Faz algum tempo que me interesso pelo assunto que intitula a postagem de hoje. Tentei recordar-me desde quando comecei a sentir-me atraído pelo suicídio. Fiz uma recapitulação de minhas memórias e acredito que cheguei a um ponto inicial. Tinha 14 anos de idade e estava na oitava série, quando li a Carta-testamento do Getúlio Vargas[1]. Achei muito poética a carta, e a primeira coisa em que pensei involuntariamente foi: "Se um dia eu me matar, vou escrever uma carta como esta" — acho estranho colocar aspas em algo que eu mesmo disse. O engraçado é que, quando pensei isso, não tinha nenhuma intenção de morrer ou coisa do tipo. Desde criança, fui educado com a idéia de que quem se mata vai pro inferno. Nunca entendi bem o porquê disso.
Estou cursando a matéria História da Filosofia Antiga na UnB, e a professora, comentando sobre os estóicos, citou um livro intitulado "Os filósofos e o suicídio"[2]. Não terminei a leitura, mas, por enquanto, está sendo uma leitura maravilhosa. O livro tem muitas referências. Fiquei feliz em ver que a maioria delas são em Língua Francesa, já que tenho conhecimento dela. Fiquei triste, contudo, com o fato de que mais um assunto que eu achava poder ser um campo para eu estudar e dar alguma contribuição original já foi discutido. Sempre gostei muito de cinema e sempre, no meu íntimo, tinha a impressão de que a Filosofia estava intrinsecamente ligada à linguagem do cinema. Aí eu achei o livro do Julio Cabrera[3] — professor da UnB — e vi que alguém já tinha discorrido sobre o tema. Quanto ao suicídio, já tinha lido o excelente livro do Albert Camus — "O mito de Sísifo"[4]. Colocarei aqui um trecho da primeira página do livro:
"Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois. Trata-se de jogos; é preciso primeiro responder. E se é verdade, como quer Nietzsche, que um filósofo, para ser estimado, deve pregar com o seu exemplo, percebe-se a importância dessa resposta, porque ela vai anteceder o gesto definitivo. São evidências sensíveis ao coração, mas é preciso ir mais fundo até torná-las claras para o espírito".
Quando comecei a ler o trecho transcrito, fiquei boquiaberto: Camus tinha dito em palavras o que estava em meu espírito e que eu mesmo não me dava conta. Concordo com ele quanto à importância do tema. Na época da minha leitura de Camus, comprei o livro "O Suicídio" do Durkheim[5], mas não consegui lê-lo todo: achei a leitura muito chata. Voltando ao livro sugerido pela minha professora, ele tem uma discussão sobre o tema no âmbito religioso, especificamente no contexto do Cristianismo. A Bíblia não é muito clara quando o assunto é suicídio. Em primeiro lugar, é importante estudar a etimologia da palavra "suicídio". Antes de seu surgimento, outros termos eram utilizados, sendo que o termo "suicídio" faz, claramente, referência ao termo "homicídio", que, por sua vez, traz consigo grande carga negativa conotativamente. O termo "suicidium" apenas aparece, pela primeira vez, no século XVII.
Personagens bíblicos como Saul[6], Abimeleque[7], Sansão[8], entre outros, cometem o suicídio; no entanto, seus atos foram vistos como heróicos. O interessante é que os textos de 1º e 2º Macabeus, que não estão na Bíblia dos protestantes, trazem a descrição do suicídio de Eleazar e de Razias. Esse fato talvez tenha tido alguma importância na constituição do cânon bíblico protestante. A questão é que nenhum texto do Novo Testamento traz uma reprovação explícita ao ato e, antes de Santo Agostinho, havia apenas posições ambíguas sobre o tema. A própria trajetória de Jesus traz ambigüidades que não se limitam às nossas interpretações atuais. No texto de João 8.21-22. — utilizando a tradução da NVI —, diz-se o seguinte:
"Mais uma vez, Jesus lhes disse: 'Eu vou embora, e vocês procurarão por mim, e morrerão em seus pecados. Para onde vou, vocês não podem ir'. Isso levou os judeus a perguntarem: 'Será que ele irá matar-se? Será por isso que ele diz: 'Para onde vou, vocês não podem ir'?' ".
(Não gosto de usar parênteses, nem é aconselhável, mas farei uso dele aqui. Precisaria utilizar aspas triplas no trecho acima! Para quem não sabe, as aspas simples [ ' ] são utilizadas para citações dentro de citações.)
O próprio sacrifício de Cristo, tendo-se por base falas dele como "ninguém tira a minha vida; eu a dou livremente" — João 10.18 — geram a pergunta de se o próprio Jesus cometeu um suicídio. Quando se entra nessa questão, alguns estudiosos diferem o sacrifício do suicídio. Sócrates, por exemplo, cometeu também um suicídio? Algumas pessoas tendem a tratar o ato do suicídio com um reducionismo extremamente simplista. Antes de ler algumas coisas sobre Psicologia, achava que quem procurava psicólogo era fraco e que não tinha inteligência suficiente pra lidar com os próprios problemas. Depois das minhas leituras, contudo, fiquei curioso em saber como era ter uma consulta com um psicólogo e insisti com minha mãe que queria ver uma. Foi uma experiência muito interessante. Focar-me-ei, no entanto, apenas num determinado aspecto dela.
A psicóloga perguntou-me qual era o meu problema, e citei o fato de que tinha alguns problemas existenciais e que não via muito sentido na vida. Eu racionava em termos práticos. Se você tem substâncias e quer um produto, qual o sentido de retardar o que você quer por finalidade? Em outros termos, se a morte é inevitável, por que a retardar? Hoje, eu não penso dessa maneira; inclusive, dentro da Química, pensei no caso do banho-maria, em que é interessante não obter o produto imediatamente. A psicóloga fez algumas perguntas pra mim, partindo de estereótipos, mas eu não me enquadrava em nenhum deles. Ela me perguntou se eu tinha depressão, e eu disse que não. Ela tinha perguntado antes o que eu fazia, e, na época, cursava Física. Ela disse que deveria ter mais facilidade com contas etc., e eu disse que tinha escolhido Física justamente porque ela me desafiava intelectualmente, e que o resto era muito fácil. Enfim, ela não acertava nada.
Citei essa experiência em particular pra dizer que mesmo os especialistas na área não estão livres de reducionismos. Voltando à questão do Cristianismo, Santo Agostinho utilizou o mandamento de que não se deve matar para dizer que o suicídio é pecado, já que matar a si mesmo está incluso em matar simplesmente. Gosto muito de Agostinho. O que mais gosto nele é o uso que ele faz da Lógica. Outro pensador do Cristianismo a tratar o suicídio como pecado foi Tomás de Aquino. Na sua Suma Teológica, ele faz um resumo dos principais argumentos utilizados contra o suicídio, dizendo que ele vai de encontro a três aspectos: individual, coletivo, no que se refere à sociedade, e teológico. Hume — um filósofo que, recentemente, entrou na minha lista de favoritos — opõe-se aos argumentos contra o suicídio de forma perspicaz.
Na Literatura, o assunto foi abordado por vários escritores, entre eles, Dostoiévski, Simone de Beauvoir, Victor Hugo, Goethe etc. . Este tem um livro chamado "Os Sofrimentos do Jovem Werther" [9] que recomendo muito. Na época de sua publicação, o efeito foi tamanho que houve uma onda de suicídios na Europa. Ele me faz lembrar de Egésia, conhecido como "peisithánatos", o que persuade a morrer. Ele foi proibido de ensinar pelo rei Ptolomeu, por volta do século IV a.C., pois vários de seus ouvintes matavam-se quando conheciam sua doutrina.
Já escrevi um conto chamado "O suicida"[10] e nesta semana compus uma música chamada "Morte de si", um dos termos utilizados no lugar de "suicídio". Vendo uma entrevista da cantora Aline Calixto, no Jô Soares, fiquei com a idéia de gravar minhas idéias quando elas vierem para não perdê-las — na entrevista, a cantora contou uma cômica história sobre gravar uma melodia que tinha criado dentro de uma igreja. Eu estava dirigindo e veio-me uma melodia com as palavras "Covarde? Eu?". Peguei meu celular, quando parei num sinal, e gravei-a. Quando cheguei em casa, peguei o violão e comecei a trabalhar em cima dela. As músicas, geralmente, nunca ficam do jeito que as penso originalmente, principalmente porque fico com pressa de vê-las prontas. A letra desta, em particular, foi a maior que já escrevi. Colocá-la-ei aqui e comentarei alguns trechos da letra, embora não goste de fazer isso, já que inibo as possíveis interpretações.
(Composição: Fábio Salgado)
Covarde? Eu? Por não querer jogar
O tolo jogo de vocês?
Por não me prender ou me esconder
Numa cela que encerra e me enterra?
Covarde? Eu? Por não prescrever pra mim
Um futuro que não seja obscuro?
Por não entender que todo mundo
Tem uma bela que o espera?
Covarde? Eu? Por não compreender
Que mesmo a vida sendo tão escassa é tão rara?
Covarde? Eu? Por esquecer que talvez a vida
Valha a pena e que talvez um dia entre em cena...
No palco que é a vida não sei se eu quero
Ser protagonista nem mesmo sei
Se quero só vê-la passando por mim
Não escolhi vir à vida, mas posso escolher morrer
Covardes sois por temerdes fazer, simplesmente,
O que escolhestes;
Por intrometerdes naquilo que está
Selado, encerrado e enterrado
Covardes dois por verdes tanto sentido
Onde tudo está perdido;
Por beberdes da fonte da água
Da mentira e da hipocrisia
Covardes sois por não compreenderdes
Que mesmo a vida sendo escassa não é rara.
Covardes sois por esquecerdes que uma vida
Que não é questionada nunca entrará de fato em cena...
Intitulei a música como "morte de si" porque achei muito poética essa forma alternativa de chamar um ato de suicídio. No segundo verso, quis dar a idéia de alguém que não vê o futuro de outra forma que não seja um futuro tenebroso, nem mesmo ao considerar a possibilidade do amor ao qual se prende a fim de poder dar um pouco de sentido à vida. Na preparação ao refrão, fiz um jogo com escassez e raridade. A palavra "rara" designa algo que é escasso, mas também valioso. No refrão, quando digo "não escolhi vir à vida, mas posso escolher morrer", faço menção à liberdade que o ato de matar-se representa. Sempre achei interessante identificar o suicídio com um ato supremo do exercício da liberdade. No livro que estou lendo, essa identificação é discutida em algumas partes.
Na segunda parte, com os conjuntos de versos depois do refrão, eu mudei o jogo. Em vez da defesa na primeira parte, a acusação; em vez da afirmação daquilo que se deixou de fazer, a afirmação daquilo que se faz para ser, de fato, covarde. Usei a idéia de covardia, justamente, para simbolizar o reducionismo de que já falei aqui. Na nova preparação ao refrão, faço menção a Platão: "Uma vida não questionada não merece ser vivida". Não destrincharei por completo a música porque gosto da idéia de que alguém consiga descobrir as mensagens que deixo nelas. É importante ressaltar que na arte existe algo chamado "eu-lírico". É claro que muita coisa que escrevo é resultado da minha vida pessoal, mas sou muito feliz e não penso em suicídio; aliás, apenas penso nele como um objeto de estudo filosófico.
[1] Para quem nunca a leu, ela está disponível na Wikipédia:
[2] http://www.livrariacultura.com.br/scripts/cultura/resenha/resenha.asp?nitem=2611599&sid=97218815711829426242497653&k5=116DA155&uid=
[3] http://www.livrariacultura.com.br/scripts/cultura/resenha/resenha.asp?nitem=7013785&sid=97218815711829426242497653&k5=191EEAD7&uid=
[4] http://www.livrariacultura.com.br/scripts/cultura/resenha/resenha.asp?nitem=160646&sid=97218815711829426242497653&k5=1D371F77&uid=
[5] http://www.livrariacultura.com.br/scripts/cultura/resenha/resenha.asp?nitem=327269&sid=97218815711829426242497653&k5=29E75E46&uid=
[7] 1 Samuel 31.4
[8] Juízes 9.54
[9] http://www.livrariacultura.com.br/scripts/cultura/resenha/resenha.asp?nitem=1861283&sid=97218815711829426242497653&k5=2D6160C7&uid=
[10] http://fabiosal.flogbrasil.terra.com.br/foto14339730.html
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(Composição: Dado Villa-Lobos/Renato Russo/Marcelo Bonfá)
Chegar até a praia e ver
Se o vento ainda esta forte
E vai ser bom subir nas pedras
Eu deixo a onda me acertar
E o vento vai levando
Tudo embora...
ver a linha do horizonte me distrai
Dos nossos planos é que tenho mais saudade
Quando olhávamos juntos
Na mesma direção
Aonde está você agora
Alem de aqui dentro de mim...
Foi só o tempo que errou
Vai ser difícil sem você
Porque você esta comigo
O tempo todo
E quando vejo o mar
Existe algo que diz
Que a vida continua
E se entregar é uma bobagem...
O que posso fazer
É cuidar de mim
Quero ser feliz ao menos,
Lembra que o plano
Era ficarmos bem...
Olha só o que eu achei
Humrun
Cavalos-marinhos...
Pra esquecer
Eu deixo a onda me acertar
E o vento vai levando
Tudo embora...
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James Gray, o mesmo diretor e roteirista do também excelente "Os Donos da noite", é o responsável pela direção de "Amantes" e divide os créditos do roteiro com Ric Menello. O filme conta com as ótimas atuações de Joaquin Phoenix — ele bem que poderia esquecer a idéia de abandonar o cinema pelo rap —, Gwyneth Paltrow, entre outros. Gostei muito da trilha sonora. Ainda estou tentando baixá-la.
Leonard, personagem interpretado pelo Joaquin, não foi muito criativo ao tentar suicidar-se. Eu o recomendaria um livro que encontrei neste ano chamado "The peaceful pill handbook", que dá dicas de como fazê-lo. Existe também um livro japonês chamado "The complete manual of suicide" com o mesmo intuito. Só tive acesso àquele, mas tentarei baixar este para matar a curiosidade.
Enfim, para não delongar mais, recomendo muito o filme. São muitas as lições e reflexões que podem ser tiradas dele; por exemplo, sobre como a vida oferece-nos opções de refúgio e estabilidade contrastadas com opções de pleno exercício de nossa liberdade, mas que oferecem riscos com os quais devemos estar dispostos a arcar.