domingo, 26 de agosto de 2018

O mito da venda de indulgências (Dom Estêvão Bettencourt, OSB)


Lutero era professor de S. Escritura em Wittenberg quando surgiu a questão das indulgências. De que se trata?

1) Todo pecado acarreta consigo a necessidade de expiação depois de ter sido perdoado. Com outras palavras:

O pecado não é somente a transgressão de uma lei, mas é a violação de uma ordem de coisas estabelecida pelo Criador; é sempre um dano infligido tanto ao indivíduo que peca, como à comunidade dos homens. Por conseguinte, para que haja plena remissão do pecado, não somente é necessário que o pecador obtenha de Deus o perdão, mas requer-se também que repare a ordem violada. Assim, por analogia, quem rouba um relógio violando a ordem da propriedade não precisa apenas pedir perdão a quem foi prejudicado, mas deve também restaurar a ordem ou devolver o relógio ao respectivo proprietário. A reparação da ordem há de ser sempre dolorosa, pois significa mortificação do velho homem pecador ou das concupiscências desregradas que o pecado só faz aguçar.

2) Consciente disto, a Igreja antiga ministrava a reconciliação dos pecadores em duas fases. Sim, o pecador confessava seus pecados a um ministro de Deus. Este não o absolvia imediatamente (cf. Jo. 20.20-22), mas impunha-lhe uma satisfação adequada, correspondente à gravidade das suas faltas; este exercício de penitência devia proporcionar ao cristão o domínio sobre si, a vitória sobre as paixões e a liberdade interior. A satisfação assim imposta, para ser realmente medicinal, costumava ser penosa; assim, por exemplo, uma quaresma de jejum, em que o penitente se vestia de peles de animais (para praticar tal penitência, o cristão tinha de exercitar dentro de si um vivo amor a Deus e um profundo horror do pecado). Somente depois de terminar a respectiva satisfação, era o pecador absolvido. Julgava-se então que estava isento não apenas da culpa, mas também de toda expiação devida aos seus pecados; estaria livre não só da culpa do pecado, mas também das raízes e das conseqüências deste. 

Esta prática penitencial conservou-se até fins do século VI. Tornou-se, porém, insustentável, pois exigia especiais condições de saúde e acarretava conseqüências penosas para todo o resto da vida de quem  a ela se submetera. Eis por que, aos poucos, foi sendo modificada.

3) No século IX, a Igreja julgou oportuno substituir certas obras penitenciais muito rigorosas por outras mais brandas; a estas a Igreja associava os méritos satisfatórios de Cristo, num gesto de indulgência. Tais obras foram chamadas "obras indulgenciadas", porque enriquecidas de indulgências: podiam ser assim indulgenciadas orações, esmolas, peregrinações...

Está claro, porém, que estas obras mais brandas enriquecidas pelos méritos de Cristo só tinham valor satisfatório se fossem praticadas com as disposições interiores que animavam os penitentes da Igreja antiga a prestar uma quarentena de jejum ou outras obras rigorosas. Não bastava, pois, rezar uma oração ou dar uma esmola para se libertar das conseqüências do pecado, mas era preciso fazê-lo com o amor a Deus e o repúdio ao pecado que encorajavam os penitentes da Igreja Antiga. Vê-se, pois, que era (e fé) muito difícil ganhar indulgências.

Mais: ninguém podia (ou pode) ganhar indulgência sem que tivesse (ou tenha) anteriormente confessado as suas faltas e houvesse (ou haja) recebido o perdão delas. A instituição das indulgências não tinha em vista apagar os pecados, mas contribuir (mediante a provocação de um ato de grande amor) para eliminar as conseqüências ou os resquícios do pecado.

Por conseguinte, a Igreja nunca vendeu o perdão dos pecados nem vendeu indulgências. O perdão dos pecados sempre foi pré-requisito para as indulgências. Quando a Igreja indulgenciava a prática de esmolas, não tencionava dizer que o dinheiro produz efeitos mágicos, mas queria apenas estimular a caridade ou as disposições íntimas do cristão para que conseguisse libertar-se das escórias remanescentes do pecado. Não há dúvida, porém, de que pregadores populares e muitos fiéis cristãos dos séculos XV e XVI usaram de linguagem inadequada ou errônea ao falar de indulgência. Foi o que deu ocasião aos protestos de Lutero e dos reformadores.

Em poucas palavras: não houve venda de indulgências, mas houve esmolas meritórias, que, praticadas com profundo repúdio do pecado e intenso amor a Deus, podiam contribuir para extinguir todo resíduo de pecado no doador da esmola.

[Retirado do opúsculo "Lutero e 'venda de indulgências'"]

sábado, 18 de agosto de 2018

Os católicos pensam que a Bíblia não é suficiente? (Gerard Verschuuren)



A MENTIRA

Os católicos não apenas adicionaram os seus próprios livros à Bíblia, mas também lhe adicionaram a sua própria interpretação. Eles ignoram o fato de que somente a Escritura determina o que deveríamos crer no Cristianismo. Além disso, eles aceitam como doutrinas ensinamentos ou crenças que não são explicitamente mencionadas na Bíblia. 

Os católicos violam a doutrina de Lutero do Sola Scriptura (Somente a Escritura), que deixa muito claro que a Escritura é a autoridade suprema em toda matéria de doutrina e de prática. A doutrina do Sola Scriptura sustenta que os crentes, individualmente, precisam apenas da Bíblia como regra de fé e que eles podem obter uma interpretação verdadeira de uma dada passagem bíblica simplesmente comparando-a com o resto daquilo que a Bíblia ensina. 

A VERDADE

Os católicos têm uma visão bastante diferente: eles alegam que precisamos da Tradição em adição à Escritura. A idéia de que a Escritura é nossa única autoridade em matéria de fé é enganadora.

Antes de provarmos que também precisamos da Tradição, precisamos perguntar-nos: o que está errado com a idéia do Sola Scriptura? O problema com a regra — ou doutrina, se assim você quiser — do "Somente a Escritura" é que ela não pode funcionar por si mesma. Existem várias razões para isso. Vamos discuti-las brevemente. 

A primeira razão é bastante simples: a doutrina do Sola Scriptura não se encontra em lugar algum da Escritura. Como diz o teólogo Joel S. Peters: "Não há um único versículo, em toda a Bíblia, que a ensine; portanto, ela se torna uma doutrina que refuta a si mesma". Além do mais, é impossível afirmar que a Escritura é inspirada e verdadeira porque ela mesma diz isso. Afirmar algo assim seria como declarar réus inocentes, em um tribunal, porque eles alegam a sua própria inocência. 

Como observa Tim Staples: "O apelo protestante à autoridade exclusiva da Escritura, a fim de defender o Sola Scriptura, é um exemplo clássico de raciocínio circular. Não se pode provar a inspiração da Escritura, ou de qualquer outro texto, a partir do próprio texto. O Livro dos Mórmons, os Vedas hindus, o Corão, os escritos de Mary Baker Eddy e muitos outros livros reivindicam inspiração, mas isso não os torna inspirados". Uma reivindicação de inspiração não é uma garantia de inspiração. Todos os líderes de seitas reivindicam inspiração. É tarefa da Igreja separar o trigo inspirado do joio não inspirado. 

A segunda razão é que a doutrina do Sola Scriptura requer que os protestantes mostrem, baseados somente na Escritura, quais livros pertencem à Escritura. No entanto, isso é algo impossível porque não há nenhuma lista do cânone que se pode encontrar na Escritura (veja o capítulo 2). Uma vez que a Bíblia não veio com um índice inspirado do seu conteúdo, a doutrina do Sola Scriptura cria a sua própria inconsistência: devemos assumir que sabemos com certeza quais livros pertencem à Bíblia baseando-nos na doutrina do "Somente a Escritura". Como diz Joel Peters: "O fato inconteste é que não se pode saber qual é o cânon a menos que haja uma autoridade fora da Bíblia que nos diga isso". Em outras palavras, a presença de um livro na Bíblia não pode ser o que o tornou bíblico, pois ele não estava inicialmente nela; pelo contrário, a Igreja primitiva julgou que certos livros eram divinamente inspirados e portanto os incluiu na Bíblia, tornando-os bíblicos. 

A terceira razão é que a Escritura não poderia se tornar um padrão de ortodoxia até que ela estivesse completa, a fim de que soubéssemos o que se deveria supor que estaria nela. Se quisermos provar tudo a partir da Escritura somente, precisaríamos de um cânone da Escritura para começar. De fato, não se poderia começar a usar o Sola Scriptura antes de que se tivesse identificado o que faz parte das Escrituras. Isso não ocorreu até o Sínodo de Roma (382), sob o Papa Dâmaso I, e os Concílios de Hipona (393) e de Cartago (397), nos quais encontramos uma lista definitiva dos livros canônicos — e cada um desses Concílios reconheceu a mesma lista de livros. Até então, os livros específicos do Novo Testamento não estavam estabelecidos explicitamente. Então, em toda Bíblia, há uma página muito importante não inspirada pelo Espírito Santo: o seu índice. 

A quarta razão é uma conseqüência do argumento anterior. Como poderiam os primeiros cristãos ter vivido pela "Escritura Somente" quando eles tinham apenas as Escrituras hebraicas, mas nada neotestamentário ainda? Talvez eles não fossem cristãos "reais"? A doutrina do Sola Scriptura nunca poderia ter funcionado para eles. Durante as suas viagens pelo Mediterrâneo, São Paulo não caminhava com uma cópia do Novo Testamento no seu bolso — uma vez que havia nenhum Novo Testamento ainda. 

A quinta razão é que a Igreja não é produto da Escritura. É o contrário: a Escritura é produto da Igreja. O Novo Testamento não existiu por um tempo, embora a Igreja estivesse muito viva. Quando Paulo morreu no ano 67, a maior parte do Novo testamento não existia ainda. O Evangelho de Marcos estava provavelmente terminado pelo ano 70, o Evangelho de Mateus por volta do ano 80, o Evangelho de Lucas por volta do ano 85, o Evangelho de João por volta do ano 90 a 100. Em outras palavras, durante a maior parte da existência da Igreja no primeiro século, não havia nenhum Novo Testamento. O Novo Testamento estava em processo de ser criado no coração da Igreja. 

A sexta razão pode ser bastante breve, embora seja muito reveladora. A doutrina do Sola Scriptura proíbe que se adicione ou que se exclua qualquer coisa da Bíblia. Entretanto, trata-se de um fato que não apenas os católicos acusam os protestantes de terem removido livros da Bíblia, mas os protestantes acusam os católicos de terem lhe adicionado livros. Aparentemente, deve haver algo mais que "somente a Escritura" que os leva a agir assim. "Somente a Escritura" não é suficiente para explicar as suas ações. 

A sétima razão baseia-se no fato de que os textos da Escritura estão abertos a várias interpretações. A Escritura, portanto, não pode ser interpretada por si mesma. Como dizia Santo Tomás: "É tarefa do bom intérprete olhar não para as palavras, mas para o significado". Em Atos dos Apóstolos, Filipe correu para o eunuco etíope na sua carruagem "e ouviu-o ler o profeta Isaías e perguntou: 'Tu compreendes o que estás lendo?'. O eunuco respondeu: 'Como poderia, se ninguém me orienta?'" (At. 8.30-31). Até mesmo o próprio Jesus demonstrou, com freqüência, como os escribas e fariseus faziam uso de interpretações erradas e, portanto, Ele os corrigia interpretando as Escrituras apropriadamente, demonstrando, assim, que as Escrituras não interpretam a si mesmas. Além disso, se a doutrina do Sola Scriptura fosse verdadeira, seria esperado que todos os protestantes estivessem de acordo uns com os outros em termos de doutrina, pois a Bíblia não poderia ensinar, simultaneamente, crenças contraditórias. 

A oitava razão baseia-se no fato de que há milhares de manuscritos bíblicos. Eles contêm variações numerosas do texto. Um escritor estima que existam mais de duzentas mil variações. Esses fatos deixam os protestantes na posição de não saberem se estão em posse daquilo que os escritores bíblicos escreveram originalmente. Graças à pesquisa bíblica e às descobertas arqueológicas, as versões modernas da Bíblia têm certa superioridade às versões antigas. Por outro lado, as Bíblias baseadas na Vulgata latina de São Jerônimo (século IV) — em inglês, esta é a bíblia católica de Douay-Rheims — são baseadas em textos originais que se perderam. Em outras palavras, essas versões mais antigas e tradicionais ultrapassam dezesseis séculos de possível corrupção textual. Isso significa que, embora os protestantes modernos possam ter, em alguns aspectos, uma Bíblia "melhor" ou mais acurada que aquela de seus antepassados, em outros aspectos, eles podem ter uma Bíblia mais "pobre" ou menos acurada. 

Um caso interessante a esse respeito é a diferença entre as versões protestante e católica de Mateus 6.9-13 — daquilo que os católicos chamam geralmente de Pai-Nosso e que os protestantes tipicamente fazem referência como sendo a Oração do Senhor. Os dois lados podem orar juntos, quase em uníssono, durante eventos ecumênicos até chegarem ao final da oração. Depois de "livrai-nos do mal", os protestantes sempre acrescentam uma linha extra: "porque teu é o Reino, o poder e a glória para sempre". As traduções da Bíblia protestantes têm essa linha extra em Mateus 6.13, mas as Bíblias católicas não, porque São Jerônimo não a menciona na sua tradução da Vulgata. Jerônimo, e muitos outros eruditos bíblicos, ao longo dos séculos, eram da opinião de que, com o melhor das suas habilidades em pesquisar cópias antigas de Mateus, essa linha extra foi acrescentada por algum tradutor piedoso a alguma tradução muito antiga de Mateus, mas que ela não estava lá no início. Portanto, não é considerada como sendo parte da Bíblia. Nenhum cristão quer ficar à mercê de traduções e cópias do original feitas por pessoas que tenham suas próprias razões pessoais para mudar as coisas. Nem todas as fontes são da mesma qualidade; os textos antigos, por vezes, são mais confiáveis do que as versões mais recentes. 

Eis a nona razão: se existem muitas interpretações legítimas da Escritura, por definição, não há interpretação definitiva, e, se não há nenhuma interpretação definitiva, então, não se pode saber se a sua interpretação é aquela objetivamente verdadeira. O corolário é este: se qualquer denominação alega que a sua própria interpretação é correta acima daquela de outras denominações, ela, efetivamente, coloca a si mesma como uma autoridade final. O Joel Peters conclui daí que, para os protestantes, "o problema aqui é que tal ato viola o Sola Scriptura, estabelecendo-se uma autoridade fora da Escritura". 

A décima razão é de natureza histórica. A doutrina do Sola Scriptura não existia antes de John Wycliffe (um precursor do Protestantismo), que a mencionou no século XIV, e não se difundiu até que Martinho Lutero surgisse no século XVI. De onde veio essa idéia? A alegação de que a Bíblia ensina essa doutrina não é nada mais do que um esforço repetido de projetar essa crença retroativamente às páginas da Escritura. Lutero estava, no fim das contas, dizendo que a autoridade final em matéria de fé é Martinho Lutero. Imagine, diz Joel Peters: "milhões e milhões de cristãos que viveram antes do século XIV seriam deixados sem uma autoridade final, abandonados para tropeçar espiritualmente, a menos que tivessem a sorte de ter acesso a uma cópia manuscrita da Bíblia".

Com base em todas essas razões, devemos chegar à conclusão de que há mais, na fé cristã, do que somente a Escritura. É o que chamamos de Tradição na Igreja Católica. Deve haver alguma coisa anterior e além da Escritura que cria a Escritura, determina o que pertence a ela e que a interpreta. As Escrituras não caíram do Céu. Os protestantes têm tentado persistentemente rejeitar o papel da tradição, mas isso é uma missão difícil de ser cumprida, como discutiremos um pouco mais. 

A Escritura é um produto da Tradição — a Tradição da Igreja primitiva, em particular, a sucessão apostólica, conectando todas as gerações posteriores à primeira geração dos apóstolos, e assim em linha direta com o próprio Jesus Cristo. Nós já encontramos tudo isso no começo da Igreja. Sabemos, por exemplo, que, quando São Clemente I sucedeu São Pedro como seu terceiro sucessor, ele enviou uma carta a Roma aos perturbadores da igreja de Corinto. A iniciativa de Clemente de instruir e disciplinar uma comunidade católica distante demonstra a influência do Bispo de Roma na Igreja primitiva. Quando Santo Inácio de Antioquia (c. 37-107) estava a caminho de Roma para ser martirizado, ele enviou cartas a sete comunidades, exortando-as a submeterem-se à autoridade dos seus Bispos. Ele foi o primeiro a usar a palavra "católico" para toda a Igreja. Somente a Escritura tende a dividir a Igreja, mas a Escritura combinada com a Tradição une a Igreja. Não é de se admirar que o Papa São João Paulo II chamou a Igreja Católica de especialista em unidade. 

Aparentemente, a Tradição estava muito viva desde o começo. Essa verdade foi expressa de várias formas por membros ilustres da Igreja. São Thomas More afirma: "A Igreja foi reunida e a fé foi crida antes que qualquer parte do Novo Testamento fosse escrita". Mais recentemente, o Arcebispo Fulton Sheen disse algo similar: "Quando finalmente os Evangelhos estavam escritos, eles registraram uma tradição, eles não a criaram. Ela já estava lá.".

A Escritura também nos diz que nem todas as coisas que Jesus disse e fez foram escritas. São Paulo diz: "ficai firmes e guardai cuidadosamente os ensinamentos que vos transmitimos, de viva voz ou por carta" (2 Ts. 2.15). Ele, obviamente, fala de dois tipos de tradição: oral e escrita. Toda a Palavra de Deus foi, em um dado momento, transmitida oralmente, o que é a Sagrada Tradição. Mais tarde, parte da Sagrada Tradição foi escrita na Escritura, tornando-se a Tradição Escrita. Em nenhum lugar, vemos Nosso Senhor comissionando seus apóstolos a evangelizar o mundo pela criação de manuscritos em Seu nome. A ênfase está sempre na pregação do Evangelho, não em escrevê-lo, imprimi-lo e distribuí-lo.

Joel Peters resume isso da seguinte maneira: "A doutrina do Sola Scriptura negligencia — ou ao menos deixa de enfatizar grosseiramente — o fato de que a Igreja veio antes da Bíblia, e não o contrário. Foi a Igreja, com efeito, que escreveu a Bíblia sob inspiração do Espírito Santo: os israelitas, como a Igreja do Antigo Testamento (ou "pré-católicos") e os primeiros católicos, como a Igreja do Novo Testamento.".

É irônico que os mesmos protestantes que normalmente zombam da Tradição, em favorecimento da Escritura, façam uso de uma Bíblia baseada em uma tradição: eles usam a Bíblia que os reformadores transmitiram-lhes. Até mesmo a própria doutrina do Sola Scriptura tornou-se uma "tradição" protestante que surgiu muito recentemente e abruptamente no século XVI. De fato, não há Escritura sem Tradição. Os protestantes gostariam de livrar-se da Tradição, mas eles não podem viver sem ela. O Catecismo diz em poucas palavras: "A Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura constituem um único e sagrado depósito da Palavra de Deus" (97). A Igreja Católica é a continuação viva da Tradição na qual as Escrituras nasceram. 

CONCLUSÃO

Não é apenas a Escritura que é crucial no Cristianismo. Há também algo mais necessário. Na Igreja Católica, chama-se Tradição. A Tradição produziu a Escritura, salvaguardou-a e interpretou-a. A Escritura é uma autoridade vital no Cristianismo, mas isso não pode ser o caso sem a Tradição, pois a Escritura somente não pode determinar como lê-la e interpretá-la. É realmente difícil, se não for impossível, defender o Sola Scriptura de forma coerente. Assim, a Igreja Católica não manipula as Escrituras com a sua Tradição, mas ela percebe que a Escritura sem a Tradição assemelha-se a um esqueleto sem carne.

[Tradução: Fábio Salgado de Carvalho; original: capítulo 3 do livro "Forty Anti-Catholic Lies: A Mythbusting Apologist Sets the Record Straight" ("Quarenta mentiras anticatólicas: um apologista desfazedor de mitos coloca os fatos no seu devido lugar"), do Gerard Verschuuren]

sábado, 11 de agosto de 2018

Maria, Mãe de Deus e Nossa Mãe



Quando examinamos os livros do Novo Testamento, em ordem cronológica, vemos que os autores falam, cada vez mais, de Nossa Senhora. Marcos, o Evangelho mais antigo dos quatro canônicos, é o que menos a cita; Mateus confere-lhe um destaque maior; em Lucas, encontramos o famoso "magnificat"; e São João, o último Evangelho canônico escrito, é o único que fala de dois episódios cruciais: as Bodas de Caná, quando Jesus Cristo decide iniciar o seu ministério público por intercessão da Sua Mãe, e a maternidade de Maria, quando Jesus fala ao apóstolo João "Aí está o seu filho".

Vamos ao último livro bíblico escrito: o Apocalipse! Lá, Nossa Senhora tem um papel crucial, é chamada de "mulher vestida de Sol" e descrita em sua luta com um dragão, que é a antiga serpente.

Deus é o único ser em quem todas as propriedades são essenciais. Não há nada sobrando nEle. As ações humanas, contrariamente, são um conjunto de verdadeiras trapalhadas porque, freqüentemente, estamos fazendo coisas das quais nos arrependemos.

Deus, por ser onipotente e onisciente, sabe, precisamente, o que está fazendo quando age. É nesse sentido que, por exemplo, Santo Tomás afirma que Deus fala com as palavras e com as coisas, enquanto nós falamos apenas com as palavras. Os milagres de Jesus Cristo são chamados de "sinais" justamente porque Jesus era Deus e sabia, por ser Deus, exatamente o que fazia.

A Tipologia, na Teologia, parte dessa prerrogativa. As ações de Deus, no Antigo Testamento, prefiguram as realidades presentes no Novo Testamento porque Deus fala-nos com os acontecimentos e porque, por não ser esquizofrênico, as escolhas que Deus fez na Antiga Aliança são as mesmas que Ele faz na Nova.

O homem e a mulher que nos introduzem no pecado, Adão e Eva, são prefigurações do homem e da mulher que nos introduziriam na salvação futuramente, Jesus e Maria; as águas que condenariam a humanidade no dilúvio prefiguram as águas que a salvariam por meio do batismo; a arca da aliança, comportando as tábuas da Lei, a Palavra Escrita por Deus, prefigura Nossa Senhora, que portaria Cristo, a Palavra viva encarnada, no seu ventre; o maná que alimenta o povo judeu prefigura o Pão da Vida, Jesus eucarístico; e assim por diante.

As próprias ações de Jesus Cristo nunca são gratuitas, mas sempre prefiguram as realidades da Nova Aliança.

Quando Jesus Cristo escolhe iniciar o seu ministério público, nas Bodas de Caná, por intercessão de Nossa Senhora, Ele está dizendo-nos que Maria teria um papel importante como intercessora, tendo a "onipotência suplicante". Quando Jesus, na cruz, diz ao apóstolo São João que Maria é sua mãe, ele está prefigurando o papel de Maria como "Mãe da Igreja", como enfatizou o Concílio Vaticano II.

Voltemos ao Evangelho de João. Uma das últimas palavras de Cristo, na cruz, foram aquelas dirigidas à sua mãe — "Aí está o seu filho" — e a João — "Aí está a sua mãe" (Jo. 19.26). Por que Jesus diria essas palavras crucificado, sabendo que, em breve, morreria? Ele estava apenas falando para João cuidar da sua mãe? Será que ele não se lembrou de pedir isso ao Apóstolo durante todo o tempo que teve antes da sua crucificação, lembrando que Jesus sabia qual seria o seu destino (Mt. 20.17-19), e, de repente, de última hora, percebeu que sua mãe precisaria de cuidados? Sabendo que aquelas palavras finais teriam repercussão na história, ele decidiu apenas dizer a São João que tomasse conta da sua mãe? Cristo, na verdade, sabia muito bem o que estava fazendo naquele momento. Ele estava indicando que todo cristão seria filho de Maria e que ela seria a nossa Mãe.

Longe de ser a mera glorificação de uma criatura, em detrimento do seu Criador, diminuir a importância de Maria, que lhe é conferida pelo próprio Cristo, em um momento crucial da sua vida, é, no fim das contas, diminuir a importância do próprio Jesus Cristo. Se as suas ações não são como as ações divinas, totalmente premeditadas e cheias de significado, se Jesus é tão atrapalhado como qualquer outro ser humano ao agir, decidindo começar sua atuação pública de uma hora pra outra e dando-se conta, no último momento, de que sua mãe estaria desprotegida, em vez de ter claras intenções ao reportar-se ao seu apóstolo, Cristo não pode ser o próprio Deus encarnado.

Todos os títulos marianos, por conta disso, devem-se a Jesus. Maria, por exemplo, é o "Vaso Espiritual" porque Jesus é o doador do Espírito Santo; ela é a "Sede da Sabedoria" porque o próprio Cristo é a Sabedoria; ela é a "Estrela da Manhã" porque Cristo é o Sol da Justiça; ela é a "Indicadora do Caminho" porque o próprio Jesus é o Caminho; ela é o "Frasco de Perfume" porque o Messias é o "Perfume que salva" (2 Cor. 2.15s.); ela é "O Cofre que Guarda o Tesouro" porque Jesus é o Tesouro; ela é a "Árvore da Vida" porque Jesus é o fruto nutriente que nos alimenta e assim por diante.

A situação não é diferente com o título de “Mãe”. Jesus foi o único ser humano que teve o privilégio de escolher quem seria a sua própria mãe, muito antes de ela existir. Se queremos ser como Jesus Cristo, aprendamos a fazer as mesmas escolhas que as suas, tomando Maria por Nossa Mãe.