domingo, 26 de agosto de 2018

O mito da venda de indulgências (Dom Estêvão Bettencourt, OSB)


Lutero era professor de S. Escritura em Wittenberg quando surgiu a questão das indulgências. De que se trata?

1) Todo pecado acarreta consigo a necessidade de expiação depois de ter sido perdoado. Com outras palavras:

O pecado não é somente a transgressão de uma lei, mas é a violação de uma ordem de coisas estabelecida pelo Criador; é sempre um dano infligido tanto ao indivíduo que peca, como à comunidade dos homens. Por conseguinte, para que haja plena remissão do pecado, não somente é necessário que o pecador obtenha de Deus o perdão, mas requer-se também que repare a ordem violada. Assim, por analogia, quem rouba um relógio violando a ordem da propriedade não precisa apenas pedir perdão a quem foi prejudicado, mas deve também restaurar a ordem ou devolver o relógio ao respectivo proprietário. A reparação da ordem há de ser sempre dolorosa, pois significa mortificação do velho homem pecador ou das concupiscências desregradas que o pecado só faz aguçar.

2) Consciente disto, a Igreja antiga ministrava a reconciliação dos pecadores em duas fases. Sim, o pecador confessava seus pecados a um ministro de Deus. Este não o absolvia imediatamente (cf. Jo. 20.20-22), mas impunha-lhe uma satisfação adequada, correspondente à gravidade das suas faltas; este exercício de penitência devia proporcionar ao cristão o domínio sobre si, a vitória sobre as paixões e a liberdade interior. A satisfação assim imposta, para ser realmente medicinal, costumava ser penosa; assim, por exemplo, uma quaresma de jejum, em que o penitente se vestia de peles de animais (para praticar tal penitência, o cristão tinha de exercitar dentro de si um vivo amor a Deus e um profundo horror do pecado). Somente depois de terminar a respectiva satisfação, era o pecador absolvido. Julgava-se então que estava isento não apenas da culpa, mas também de toda expiação devida aos seus pecados; estaria livre não só da culpa do pecado, mas também das raízes e das conseqüências deste. 

Esta prática penitencial conservou-se até fins do século VI. Tornou-se, porém, insustentável, pois exigia especiais condições de saúde e acarretava conseqüências penosas para todo o resto da vida de quem  a ela se submetera. Eis por que, aos poucos, foi sendo modificada.

3) No século IX, a Igreja julgou oportuno substituir certas obras penitenciais muito rigorosas por outras mais brandas; a estas a Igreja associava os méritos satisfatórios de Cristo, num gesto de indulgência. Tais obras foram chamadas "obras indulgenciadas", porque enriquecidas de indulgências: podiam ser assim indulgenciadas orações, esmolas, peregrinações...

Está claro, porém, que estas obras mais brandas enriquecidas pelos méritos de Cristo só tinham valor satisfatório se fossem praticadas com as disposições interiores que animavam os penitentes da Igreja antiga a prestar uma quarentena de jejum ou outras obras rigorosas. Não bastava, pois, rezar uma oração ou dar uma esmola para se libertar das conseqüências do pecado, mas era preciso fazê-lo com o amor a Deus e o repúdio ao pecado que encorajavam os penitentes da Igreja Antiga. Vê-se, pois, que era (e fé) muito difícil ganhar indulgências.

Mais: ninguém podia (ou pode) ganhar indulgência sem que tivesse (ou tenha) anteriormente confessado as suas faltas e houvesse (ou haja) recebido o perdão delas. A instituição das indulgências não tinha em vista apagar os pecados, mas contribuir (mediante a provocação de um ato de grande amor) para eliminar as conseqüências ou os resquícios do pecado.

Por conseguinte, a Igreja nunca vendeu o perdão dos pecados nem vendeu indulgências. O perdão dos pecados sempre foi pré-requisito para as indulgências. Quando a Igreja indulgenciava a prática de esmolas, não tencionava dizer que o dinheiro produz efeitos mágicos, mas queria apenas estimular a caridade ou as disposições íntimas do cristão para que conseguisse libertar-se das escórias remanescentes do pecado. Não há dúvida, porém, de que pregadores populares e muitos fiéis cristãos dos séculos XV e XVI usaram de linguagem inadequada ou errônea ao falar de indulgência. Foi o que deu ocasião aos protestos de Lutero e dos reformadores.

Em poucas palavras: não houve venda de indulgências, mas houve esmolas meritórias, que, praticadas com profundo repúdio do pecado e intenso amor a Deus, podiam contribuir para extinguir todo resíduo de pecado no doador da esmola.

[Retirado do opúsculo "Lutero e 'venda de indulgências'"]

Um comentário:

  1. Olá, Fábio. Entendi plenamente o que são as indulgências. Isso ajuda, inclusive, a responder quando questionam o fato de o padre mandar rezar "não sei quantas Ave Marias" depois da confissão. Há muita falta de conhecimento.
    Bem, tenho uma pergunta - quer dizer, então, que não havia realmente a venda direta das indulgências pela Igreja? Você sabe que as escolas não tem a melhor propaganda pró -Igreja Católica, mas a distorção é tão grande assim mesmo? Meu Deus! Eu imaginava uma espécie de barraquinha onde os fiéis faziam fila para "comprar" as indulgências dos padres. Que barbaridade! Graças a Deus cheguei à Verdade, mesmo após uma vida de protestantismo e tanta informação errada.

    Deus o abençoe!

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