É bastante comum lermos nos livros de Mariologia sobre o "sim" de Maria, sobre o seu livre consentimento em ser usada como instrumento para a encarnação --- "Eis a escrava do Senhor. Faça-se em mim segundo a tua palavra" (Lc. 1.38). Enquanto nós, católicos, entoamos cânticos para lembrarmo-nos do "sim" de Maria, nossos irmãos separados minimizam o evento dizendo que Deus escolheria outra pessoa no caso de uma recusa sua. Neste texto, eu mostrarei que a situação não é tão simples como os protestantes imaginam.
Antes de apresentar o meu argumento, preciso dar algumas explicações técnicas para aqueles que não estão familiarizados com certas ferramentas lógicas e com Filosofia.
A semântica dos mundos possíveis de Kripke
Como eu sei que nem todos estão familiarizados com a semântica dos mundos possíveis de Kripke, eu tentarei explicá-la de maneira informal.
Antes de apresentar o meu argumento, preciso dar algumas explicações técnicas para aqueles que não estão familiarizados com certas ferramentas lógicas e com Filosofia.
A semântica dos mundos possíveis de Kripke
Como eu sei que nem todos estão familiarizados com a semântica dos mundos possíveis de Kripke, eu tentarei explicá-la de maneira informal.
Mundos possíveis são, "grosso modo", situações possíveis. Por exemplo, há um mundo possível em que eu não tenha nascido no Brasil, mas nasça no Japão. Há um mundo possível em que eu não seja católico, mas muçulmano e assim por diante.
Saul Kripke criou uma maneira precisa de tratarmos a semântica desses mundos possíveis.
Vejam a imagem acima. Os "wn", com "n" variando de 1 a 4, são os nomes dos mundos possíveis, que são representados pelos círculos. Quando houver a letra "p" dentro de um círculo, significará que a proposição "p" é verdadeira naquele mundo; no caso de haver "~p", significará que "p" é falsa no mundo em questão. A proposição "p" pode representar qualquer frase, por exemplo, do tipo "Fábio é católico".
As setas, nomeadas pelos "Rn", com "n" variando de 1 a 6, serão as relação de acesso que indicarão o que um determinado mundo está "enxergando". Estas relações de acesso poderiam ser entendidas como, por exemplo, o meu campo visual se eu estiver em um determinado cômodo. Se eu estiver trancado no meu quarto, não consigo ver quantas pessoas estão na cozinha ou o que está acontecendo por lá, enquanto, se houver uma janela voltada para um parque, eu conseguiria ver quais são os eventos que ocorrem nele.
Saul Kripke criou uma maneira precisa de tratarmos a semântica desses mundos possíveis.
Vejam a imagem acima. Os "wn", com "n" variando de 1 a 4, são os nomes dos mundos possíveis, que são representados pelos círculos. Quando houver a letra "p" dentro de um círculo, significará que a proposição "p" é verdadeira naquele mundo; no caso de haver "~p", significará que "p" é falsa no mundo em questão. A proposição "p" pode representar qualquer frase, por exemplo, do tipo "Fábio é católico".
As setas, nomeadas pelos "Rn", com "n" variando de 1 a 6, serão as relação de acesso que indicarão o que um determinado mundo está "enxergando". Estas relações de acesso poderiam ser entendidas como, por exemplo, o meu campo visual se eu estiver em um determinado cômodo. Se eu estiver trancado no meu quarto, não consigo ver quantas pessoas estão na cozinha ou o que está acontecendo por lá, enquanto, se houver uma janela voltada para um parque, eu conseguiria ver quais são os eventos que ocorrem nele.
Para saber se "p" é possível em um dado mundo, basta você ver se há pelo menos um mundo possível ao qual ele tem acesso em que "p" seja verdadeira. Por exemplo, "p" é possível no mundo w2 porque este mundo tem acesso ao mundo w3 por meio da relação R4 e "p" é verdadeira em w3. No mundo w4, por sua vez, "p" é impossível porque este mundo só tem acesso a ele mesmo e, nele, é o caso de "~p" ser verdadeiro.
Para saber se a proposição "p" é necessária em um dado mundo, temos de ver se "p" é verdadeira em todos os mundos acessíveis ao mundo em questão. Por exemplo, no mundo w1, "p" é necessária porque é verdadeira em todos os mundos acessíveis a w1, no caso, o próprio mundo w1, acessível por meio da relação R1, o mundo w2, acessível por meio de R2, e o mundo w3, acessível por R3. No mundo w2, "p" não é necessária, pois há pelo menos um mundo acessível a ele, no caso, o mundo w4, acessível por R6, em que "p" não é verdadeira.
O melhor dos mundos possíveis de Leibniz
Embora tenha sido Kripke o primeiro a dar uma semântica satisfatória para os mundos possíveis no século XX, a idéia é antiga. Leibniz, por exemplo, no século XVII, já lidava com a idéia de mundos possíveis de maneira informal. O filósofo alemão lançou mão da idéia de "melhor mundo possível" para construir a sua "Teodicéia". Em termos simples, Leibniz queria dar uma resposta para como o mal e o sofrimento poderiam existir em um mundo em que houvesse um Deus sumamente bom e onipotente.
Poderíamos resumir o raciocínio de Leibniz da seguinte maneira: Deus, quando criou este mundo, sendo onipotente, poderia, em princípio, criar o mundo que quisesse. Sendo, entretanto, Deus a Suma Bondade e Perfeito, Ele não poderia ter criado outro mundo que não fosse o melhor mundo possível de ser criado. Em outras palavras, a configuração deste mundo é a melhor possível: se houvesse outra melhor, Deus tê-la-ia criado.
Há muitas críticas sobre a idéia de um melhor mundo possível, mas não entrarei no mérito delas aqui. Estou concebendo um artigo para responder a alguns questionamentos como o de Plantinga, que chega a falar sobre o "Lapso de Leibniz". Creio que a maior parte das críticas a Leibniz não leva em consideração um conceito importante que é usado pelo filósofo, que é o de compossibilidade. Este conceito diz respeito ao fato de que todos os eventos deste mundo são compossíveis, ou seja, eles apenas são possíveis de maneira conjunta.
Objeções infantis a Leibniz consideram que um mundo sem dor física, por exemplo, seria um mundo melhor que este e que, portanto, sempre é possível concebermos facilmente mundos que sejam, de fato, melhores que este mundo. Tais críticas, entretanto, desconsideram que não temos como saber como cada evento deste mundo repercute sobre outros eventos no decorrer do tempo e da história. É bastante fácil compreender o que digo quando nos lembramos dos filmes de ficção que tratam sobre as viagens no tempo ou mesmo a Teoria do Caos. Deus, entretanto, sendo onisciente e onipotente, é o único ser que está em condições de saber sobre como cada evento influenciará outros eventos.
Deus quis criar um mundo em que houvesse a maior quantidade possível de pessoas que seriam salvas livremente e que se santificariam, ganhando virtudes. A partir desta restrição, é bastante razoável compreendermos por que um mundo com sofrimento seria melhor que um mundo sem sofrimento.
Onipotência obstinada e persistente
Quando afirmei que Deus poderia ter criado qualquer mundo possível, vejam que eu disse que Deus poderia fazer isto "em princípio". Agora, ficará mais claro por que eu disse isto.
Como vocês puderam ver, sempre fazemos a análise nos mundos a partir das suas relações de acesso. Estas relações recebem muitas interpretações na literatura. Aqui, iremos interpretá-las como sendo ações acessíveis a Deus tendo-se por vista a sua natureza divina. Dou um exemplo. Deus é onipotente. Deus poderia mudar a sua própria natureza e tornar-se mau? Se pensássemos apenas na onipotência divina, se Deus pode fazer tudo, ele poderia, em princípio, modificar a sua própria natureza e tornar-se mau; contudo, Deus não é só onipotente. Deus, também, é a Suma Bondade e é perfeito. Assim sendo, Ele saberia que mudar a sua própria natureza não seria um ato bondoso. Dizendo de outro modo, Deus poderia tornar-se mau, mas ele nunca faria isto. Com a linguagem dos mundos possíveis, poderíamos dizer que as relações de acesso, no caso divino, dizem respeito aos atributos dEle. Seria acessível a Deus aquilo que fosse condizente com a Sua própria natureza.
Para saber se a proposição "p" é necessária em um dado mundo, temos de ver se "p" é verdadeira em todos os mundos acessíveis ao mundo em questão. Por exemplo, no mundo w1, "p" é necessária porque é verdadeira em todos os mundos acessíveis a w1, no caso, o próprio mundo w1, acessível por meio da relação R1, o mundo w2, acessível por meio de R2, e o mundo w3, acessível por R3. No mundo w2, "p" não é necessária, pois há pelo menos um mundo acessível a ele, no caso, o mundo w4, acessível por R6, em que "p" não é verdadeira.
O melhor dos mundos possíveis de Leibniz
Embora tenha sido Kripke o primeiro a dar uma semântica satisfatória para os mundos possíveis no século XX, a idéia é antiga. Leibniz, por exemplo, no século XVII, já lidava com a idéia de mundos possíveis de maneira informal. O filósofo alemão lançou mão da idéia de "melhor mundo possível" para construir a sua "Teodicéia". Em termos simples, Leibniz queria dar uma resposta para como o mal e o sofrimento poderiam existir em um mundo em que houvesse um Deus sumamente bom e onipotente.
Poderíamos resumir o raciocínio de Leibniz da seguinte maneira: Deus, quando criou este mundo, sendo onipotente, poderia, em princípio, criar o mundo que quisesse. Sendo, entretanto, Deus a Suma Bondade e Perfeito, Ele não poderia ter criado outro mundo que não fosse o melhor mundo possível de ser criado. Em outras palavras, a configuração deste mundo é a melhor possível: se houvesse outra melhor, Deus tê-la-ia criado.
Há muitas críticas sobre a idéia de um melhor mundo possível, mas não entrarei no mérito delas aqui. Estou concebendo um artigo para responder a alguns questionamentos como o de Plantinga, que chega a falar sobre o "Lapso de Leibniz". Creio que a maior parte das críticas a Leibniz não leva em consideração um conceito importante que é usado pelo filósofo, que é o de compossibilidade. Este conceito diz respeito ao fato de que todos os eventos deste mundo são compossíveis, ou seja, eles apenas são possíveis de maneira conjunta.
Objeções infantis a Leibniz consideram que um mundo sem dor física, por exemplo, seria um mundo melhor que este e que, portanto, sempre é possível concebermos facilmente mundos que sejam, de fato, melhores que este mundo. Tais críticas, entretanto, desconsideram que não temos como saber como cada evento deste mundo repercute sobre outros eventos no decorrer do tempo e da história. É bastante fácil compreender o que digo quando nos lembramos dos filmes de ficção que tratam sobre as viagens no tempo ou mesmo a Teoria do Caos. Deus, entretanto, sendo onisciente e onipotente, é o único ser que está em condições de saber sobre como cada evento influenciará outros eventos.
Deus quis criar um mundo em que houvesse a maior quantidade possível de pessoas que seriam salvas livremente e que se santificariam, ganhando virtudes. A partir desta restrição, é bastante razoável compreendermos por que um mundo com sofrimento seria melhor que um mundo sem sofrimento.
Onipotência obstinada e persistente
Quando afirmei que Deus poderia ter criado qualquer mundo possível, vejam que eu disse que Deus poderia fazer isto "em princípio". Agora, ficará mais claro por que eu disse isto.
Como vocês puderam ver, sempre fazemos a análise nos mundos a partir das suas relações de acesso. Estas relações recebem muitas interpretações na literatura. Aqui, iremos interpretá-las como sendo ações acessíveis a Deus tendo-se por vista a sua natureza divina. Dou um exemplo. Deus é onipotente. Deus poderia mudar a sua própria natureza e tornar-se mau? Se pensássemos apenas na onipotência divina, se Deus pode fazer tudo, ele poderia, em princípio, modificar a sua própria natureza e tornar-se mau; contudo, Deus não é só onipotente. Deus, também, é a Suma Bondade e é perfeito. Assim sendo, Ele saberia que mudar a sua própria natureza não seria um ato bondoso. Dizendo de outro modo, Deus poderia tornar-se mau, mas ele nunca faria isto. Com a linguagem dos mundos possíveis, poderíamos dizer que as relações de acesso, no caso divino, dizem respeito aos atributos dEle. Seria acessível a Deus aquilo que fosse condizente com a Sua própria natureza.
Na minha monografia de conclusão de curso [1], apoiado em uma distinção feita pelo Nathan Salmon em Filosofia da Linguagem, eu introduzo os conceitos de "verdades persistentemente necessárias" e "verdades obstinadamente necessárias". O primeiro tipo diz respeito às verdades que são necessárias quando temos em vista as relações de acesso. O segundo tipo trata de verdades que são necessárias, mas de modo independente das relações de acesso.
Na semântica de Kripke, vocês devem ter percebido que as relações de acesso limitam a análise nos mundos atuais, que são aqueles mundos que são usados como ponto de partida para você verificar a veracidade de sentenças modais. Eu, entretanto, introduzi a distinção para lidar com aqueles mundos que não são acessíveis por meio das relações de acesso.
O argumento da unicidade de Maria
Na semântica de Kripke, vocês devem ter percebido que as relações de acesso limitam a análise nos mundos atuais, que são aqueles mundos que são usados como ponto de partida para você verificar a veracidade de sentenças modais. Eu, entretanto, introduzi a distinção para lidar com aqueles mundos que não são acessíveis por meio das relações de acesso.
O argumento da unicidade de Maria
Creio que já introduzi os principais elementos para que vocês compreendam o meu argumento. Alguns outros serão introduzidos no decorrer da sua descrição.
Partamos do fato de que Deus, realmente, criou o melhor dos mundos possíveis, ou seja, se houvesse um mundo que fosse melhor do que este, Deus tê-lo-ia criado por ser onipotente e por ser sumamente bom.
Quando Deus escolheu o melhor dos mundos possíveis, Ele, também, escolheu a melhor mãe que poderia ter, a saber, sabemos que Maria foi a escolhida. Maria, sendo cheio de Graça, aceitou, livremente, o convite para tornar-se mãe de Jesus Cristo.
Eu pergunto: Deus poderia ter criado um mundo possível em que Maria dissesse não? Bem, do ponto de vista da onipotência divina, como Ele pode fazer o que quiser, a resposta seria sim; entretanto, esta resposta não estaria levando em conta os outros atributos divinos. Se Deus é perfeito, Ele sempre age de maneira perfeita. Crer que Deus poderia ter agido de outro modo é diminuí-lo portanto, como se todas as suas ações não fossem sempre perfeitíssimas. Com a terminologia que introduzi, a criação de um mundo em que Maria não fosse a mãe de Jesus é uma possibilidade obstinada, embora não seja persistente.
Temos de, neste momento, levar em conta outro fato. Em Filosofia, há a distinção clássica entre propriedades essenciais e propriedades acidentais. As primeiras seriam aquelas propriedades cuja perda levariam o seu portador a deixar de ser aquilo que ele é, enquanto a perda das propriedades do segundo tipo não afetariam a essência do seu portador. Dou um exemplo. Sou míope e astigmático. Não nos parece que eu deixaria de ser quem sou se, de repente, eu tivesse a visão perfeita; entretanto, parece-nos que eu não seria mais eu se eu deixasse de ser um animal racional.
Há muitas discussões sobre o que seriam, na verdade, propriedades essenciais e acidentais, mas o que é importante para nós aqui é o seguinte: fazer parte do mundo escolhido por Deus, que é o melhor possível, parece ser uma propriedade meramente acidental ou essencial? Se fazer parte dos planos de Deus para a humanidade é algo essencial, a perda de qualquer uma das características que temos neste mundo tornar-nos-ia algo bastante diferente.
O mesmo Saul Kripke explica que os nomes comportam-se como designadores rígidos. Isto significa que os nomes continuam designando os objetos a despeitos das suas propriedades. Por exemplo, suponhamos que eu dei o nome de "Rio Grande" a uma cidade porque lá há, de fato, um rio que seja grande. Suponhamos que o rio seque. Ora, não deixaríamos de designar aquela cidade de "Rio Grande" porque o rio deixou de existir.
Um outro filósofo, chamado David Lewis, entretanto, fala de uma alternativa à concepção de Kripke que ficou conhecida por "realismo modal". Para Lewis, cada um dos objetos de cada mundo possível são independentes. Quando dizemos que há, por exemplo, um mundo possível em que Aristóteles não foi o aluno mais conhecido de Platão, o correto deveríamos chamar este "Aristóteles" de Aristóteles' (Aristóteles linha) ou de Aristóteles 2.
A concepção de Lewis é chamada de "realismo modal" porque ele defende que cada objeto de cada mundo possível é igualmente real e que a propriedade de ser real seria indéxica. Nós só dizemos que este mundo é real e os outros são meramente possíveis porque estamos neste mundo, e não nos outros. O que farei com o meu argumento é comprar a tese das contrapartes, de que os objetos dos mundos são totalmente independentes, ou seja, o Aristóteles que não foi o aluno mais conhecido de Platão não é Aristóteles de maneira alguma, mas alguém totalmente diferente, sem aceitar a tese da realidade de todos os mundos possíveis.
Meu professor de Metafísica na minha graduação em Filosofia lembrava-nos de uma antiga cantiga infantil quando nos explicava o realismo modal de David Lewis [2]. A letra da canção diz: "O meu chapéu tem três pontas. Tem três pontas o meu chapéu. Se não tivesse três pontas, não seria o meu chapéu.".
De maneira semelhante, poderíamos dizer que minha Mãe Santíssima disse sim. Disse sim a minha Mãe Santíssima. Se não tivesse dito sim, não seria a minha Mãe Santíssima. Por esta razão, o título deste texto traz "Maria" entre aspas.
Conclusão
Eu tentarei resumir o meu argumento:
Deus criou o melhor dos mundos possíveis. Neste mundo, Ele escolheu ter Maria por mãe, que disse "sim" ao anjo que lhe anunciou que ela conceberia Jesus. Supor que Deus teria, simplesmente, escolhido outra mãe, caso Maria dissesse não, é um contrassenso porque seria partir do pressuposto de que Deus não criou o melhor dos mundos possíveis, que Ele não age de maneira perfeita, e, além do mais, a "Maria" que dissesse "não" ao anjo não seria Maria, pois estar cheia de Graça e corresponder à vontade divina é uma propriedade essencial sua, que, por sinal, é compossível com todo o projeto de salvação.
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