domingo, 20 de novembro de 2016

Anátema (Jimmy Akin)

Concílio de Trento, pintura do Museo del Palazzo del Buonconsiglio, Trento

A palavra "anátema" é um dos termos mais mal compreendidos na apologética anticatólica. Quase todos os anticatólicos, do último inculto do espectro àqueles que dão a si ares de erudição, compreendem mal isso.

Por exemplo, no que diz respeito aos mais incultos no anticatolicismo, o artigo “Apostólico ou apóstata”, de Mike P. Gendron, afirma: “Muitos cristãos não sabem que os Concílios católicos de Trento e do Vaticano II emitiram mais de 100 anátemas [sic] (condenações) sobre qualquer um que crer que a salvação é somente pela graça, por meio da fé apenas, em Cristo apenas. Todas essas condenações ainda estão em vigor hoje.”.

O Gendron, obviamente, nunca leu Trento ou o Vaticano II. O Vaticano II não usou o termo “anátema” em qualquer um dos seus documentos. Enquanto os cânones de Trento usam o termo, não há, em parte alguma, algo perto de cem cânones dedicados ao assunto da salvação nem quaisquer cânones que, compreendidos adequadamente, condenam os três pontos da soteriologia que o Gendron nomeia.

Encontramos confusão similar sobre o termo entre aqueles que se apresentam como intelectuais. Em seu livro “The Roman Catholic Controversy” (“A Controvérsia Católica Romana”), James R. White, ao resumir os cânones de Trento sobre a Eucaristia, afirma que, de acordo com o Concílio, “qualquer um que nega a veracidade de qualquer uma dessas proclamações está sob o anátema de Deus” (164).

Quando eu li a declaração do White a um amigo conhecedor do assunto, ele se irrompeu a rir. Depois que ele se acalmou, ele sugeriu que, talvez, a declaração foi calculada para enganar aqueles que não sabiam como o termo anátema é usado, uma vez que é absurdo para aqueles que o sabem. Eu lhe disse, mantendo a caridade, que nós não deveríamos inferir que esse é um caso de fraude deliberada, mas apenas que ele expõe a ignorância do White e a sua determinação em tecer críticas sem uma pesquisa adequada.

Entretanto, seja como for, a presença generalizada entre anticatólicos de piadas como essas cometidas pelo Gendron e pelo White sugere que gastar algum tempo esclarecendo o significado e o uso do anátema é justificado.

Embora o termo seja grego, reflete um conceito que é encontrado no Antigo Testamento. O equivalente hebraico de anátema é “kherem”, que se refere a uma coisa devotada ao Senhor — uma coisa, solenemente, oferecida a Deus de um modo que, por vezes, envolve a sua destruição completa. “Kherem” é, freqüentemente, traduzido, em Inglês, pelos termos “coisa devotada”, “coisa dedicada” ou coisa colocada “sob a proibição”. O Antigo Testamento aplica “kherem” a objetos físicos (Dt. 7.26, 13.17), ao gado (1 Sm. 15.21), a pessoas individuais (1 Rs. 20.42), a grupos de pessoas (Is. 34.5, 43.28), a cidades inteiras (Js. 6.17) e a terras ou pedaços de terra (Lv. 27.21; Zc. 14.11; Ml. 4.6). Coisas a serem colocadas sob proibição pelos homens foram ou destruídas (Lv. 27.28) ou dadas aos sacerdotes (Nm. 18.14; Ez. 44.29). Uma terra sob proibição era uma terra que tinha sido amaldiçoada (Zc. 14.11; Ml. 4.6). Paradoxalmente, alguma coisa podia ser “kherem” ou porque era sagrada ou porque era profana.

O termo grego anátema compartilha algo desse paradoxo. Ele é derivado das raízes ana- ("em", "sobre", "entre", "no meio de") e tithemi ("colocar", "pôr", "definir"). Etimologicamente, a palavra sugere alguma coisa colocada entre coisas sagradas (i.e. , em um templo) — um sentido preservado em uma variante do termo anátema (Lucas 21.5). O anátema mais comum tem o sentido de uma maldição e é aplicado no Novo Testamento a uma maldição pela qual indivíduos unem-se (Atos 23.14), a indivíduos que rejeitam o verdadeiro Evangelho (Gl. 1.8-9), que não amam a Cristo (1 Cor. 16.22) ou que estão, de outra maneira, separados de Cristo (Rm. 9.6). Ele é aplicado, por falsos profetas blasfemadores, ao próprio Jesus (1 Cor. 12.3).

De interesse especial são os usos eclesiásticos de Paulo do anátema — Gálatas 1.8-9 e 1 Coríntios 16.22 — nos quais ele diz que, se uma pessoa é culpada de certas faltas, então, “seja anátema”. No mínimo, isso direcionou a comunidade cristã a olhar o ofensor com certo cuidado. Isso envolveu sua exclusão da comunidade, como, claramente, deve ser feito no caso de uma pessoa que pregue um falso evangelho. Tal exclusão — por conta de uma variedade de ofensas — é atestada em outras partes do Novo Testamento (e.g. , Mt. 18.15-18), e, freqüentemente, diz-se que se trata de uma “entrega [do ofensor] a Satanás” a fim de que ele possa sofrer, sem a proteção da Igreja, até que se dirija ao arrependimento (1 Cor. 5; 2 Cor. 2.5-11; Tt. 3.10).

Mais tarde, na história da Igreja, essa exclusão para provocar o arrependimento recebeu o nome de “excomunhão”. Originalmente, a Igreja não diferenciou excomunhão de anátema, razão pela qual os Concílios Ecumênicos definiram, tradicionalmente, os seus cânones dogmáticos usando a fórmula “Se alguém disser [...] que seja anátema”, significando que qualquer um que ensine a proposição condenada estará anatematizado ou cortado da sociedade cristã.

Entre os Concílios Ecumênicos, o uso começou com o primeiro Concílio de Nicéia (A.D. 325), que aplicou a fórmula àqueles que que negam a divindade de Cristo. Desde então, a fórmula foi usada por todos os Concílios Ecumênicos que proclamaram cânones dogmáticos (como o Vaticano II não proclamou cânones dogmáticos, ele nunca usou o termo anátema).

Com o tempo, uma distinção veio a ser feita entre excomunhão e anátema. A natureza precisa da distinção variou, mas, finalmente, fixou-se. Na época de Gregório IX (1370-1378), o termo anátema foi usado para descrever uma excomunhão importante que foi realizada com uma cerimônia solene pontifícia. Isso costumava envolver o toque de um sino, o fechamento de um livro e o apagamento de velas, significando, coletivamente, que a mais alta corte eclesiástica tinha se pronunciado e que não reconsideraria o assunto até que o indivíduo desse evidência de arrependimento.

Tais solenidades foram raras na história da Igreja. Elas permaneceram nos livros, entretanto, tão tardiamente como no Código de Direito Canônico de 1917, que previa que a “Excomunhão [...] chama-se anátema, especialmente, quando é imposta com as solenidades que estão descritas no Pontificale Romanum” (Codex Iuris Canonici (CIC) [1917] 2257 §§ 1-2).

A pena, no entanto, foi usada tão raramente que ela foi removida do Código de Direito Canônico de 1983. Isso significa que, hoje, a penalidade do anátema  não existe na lei da Igreja. O novo Código prevê que “Com a entrada em vigor deste Código, são ab-rogados: 1.° o Código de Direito Canónico promulgado no ano de 1917 [...] 3.º quaisquer leis penais, quer universais quer particulares, dimanadas da Sé Apostólica, a não ser que sejam recebidas neste Código” (CIC [1983] 6 §1). A penalidade do anátema não foi renovada no novo Código e, assim, foi revogada quando o Código entrou em vigor em 1º de janeiro de 1983.

Com isso como pano de fundo, a absurdidade das coisas ditas pelos anticatólicos sobre os anátemas pronunciados por Trento e por outros Concílios é evidente. Um sem número de erros estão onipresentes nos escritos anticatólicos:

1. “Um anátema sentencia uma pessoa o Inferno”. Esse não é o caso. Sentenciar alguém ao Inferno é um poder que apenas Deus, e não a Igreja, pode exercer.

2. “Um anátema era um sinal seguro de que uma pessoa iria para o Inferno”. Novamente, não é verdade. Os anátemas eram apenas justificados por pecados muito sérios, mas não existia nenhuma razão pela qual o ofensor não poderia arrepender-se e aqueles que se arrependessem não estariam condenados.

3. “Um anátema era um sinal seguro de que uma pessoa não estava em estado de graça”. Isso não é verdade por duas razões: (a) a pessoa pode ter se arrependido desde o momento em que o anátema foi emitido e (b) a pessoa poderia não estar em pecado mortal no momento em que o anátema foi proclamado.

Os Anátemas — como as penalidades impostas sob a lei civil — repousam no julgamento da corte, que deve tomar suas decisões baseadas na evidência apresentada. Ela não pode, diretamente, examinar a consciência do indivíduo em questão. Então, enquanto os anátemas eram impostos por conta de um comportamento, seriamente, pecaminoso, isso não era uma garantia de que ele era um pecado mortal. Para que um pecado sério torne-se mortal, ele deve ser cometido com a advertência e o consentimento necessários e, embora um ofensor possa dar toda a aparência dessas condições, eles podem não estar lá na realidade — por exemplo, por meio de algum impedimento cognitivo ou volitivo oculto.

4. “Os anátemas foram feitos para prejudicar o ofensor”. Não. Os anátemas eram, simplesmente, uma excomunhão importante realizada com uma cerimônia papal especial e, como em todas as excomunhões, o seu intuito era medicinal, não punitivo. O objetivo era proteger a comunidade cristã da propagação de doutrinas ou de comportamentos maléficos e levar o indivíduo a reconhecer a natureza das suas ações. Embora estar privado da comunhão da Igreja não seja saudável, isso não muda o fato de que a orientação fundamental das excomunhões e dos anátemas é medicinal, não punitiva.

5. “Os anátemas têm efeito automaticamente”. Embora a Igreja tenha penalidades que têm efeito automaticamente (latae sententiae), a penalidade do anátema não era uma delas.

Isso deveria ser óbvio pelo fato de que uma cerimônia pontifícia especial tinha de ser realizada como parte do anátema. Obviamente, o mero fato de que alguém profira uma heresia em alguma parte do mundo não faz o Papa, de repente, parar o que está fazendo para que realize um rito específico com respeito a essa pessoa. 

Os anátemas de Trento e de outros Concílios foram como a maioria das penalidades da lei civil, que apenas têm efeito por meio de processos judiciais. Se a lei civil prescreve a prisão para uma ofensa particular, aqueles que a cometem não aparecem, repentinamente, na cadeia. Da mesma forma, quando a lei eclesiástica prescreveu um anátema para uma ofensa particular, aqueles que a cometeram tinham de esperar até que o processo judicial estivesse completo antes que o anátema tivesse efeito.

6. “Os anátemas foram aplicados a todos os protestantes”. A absurdidade dessa acusação é óbvia pelo fato de que os anátemas não têm efeito automaticamente. O número limitado de horas que um dia tem, por si só, garantiria que apenas um punhado de protestantes poderia ter sido anatematizado. Na prática, a penalidade tendia a ser aplicada apenas aos ofensores católicos notórios que tinham uma pretensão de permanecer na comunidade católica.  

7. “Os anátemas ainda vigoram hoje”. Essa é a falsidade mais comum que encontramos no tocante aos anátemas nos escritos de anticatólicos. Eles não vigoram hoje. A penalidade foi empregada de maneira tão pouco freqüente ao longo do curso da história que é duvidoso que alguém sob um anátema estivesse vivo quando o novo Código de Direito Canônico foi promulgado, em 1983, quando até mesmo a penalidade, em si mesma, foi abolida.

8. “A Igreja não pode abolir os seus anátemas”. Os anticatólicos amam repetir essa falsidade por arroubos retóricos. Entretanto, novamente, não é verdade. A Igreja está livre para abolir qualquer penalidade ou lei eclesiástica que queira e aboliu essa em particular.

Como a penalidade foi abolida, uma palavra deveria ser dita sobre o status dos cânones conciliares que empregaram essa penalidade. Além de prescrever a imposição de uma penalidade jurídica, o modelo de frase do anátema (“seja anátema”), também, veio a ser uma das frases que a Igreja, tradicionalmente, usou para proclamar definições doutrinais. 

Estudiosos católicos têm, já faz algum tempo, reconhecido que, quando um Concílio Ecumênico aplica essa frase a uma matéria doutrinal, então, a matéria está esclarecida infalivelmente. (Se um Concílio aplica a frase a uma matéria disciplinar, então, a matéria não estaria liquidada infalivelmente, uma vez que apenas matérias de doutrina, não disciplinares, estão sujeitas à definição doutrinal.)

Então, quando Trento e outros Concílios Ecumênicos empregaram o modelo do anátema com respeito a matérias doutrinárias, não apenas uma penalidade judicial foi prescrita, mas uma definição doutrinal, também, foi estabelecida. Hoje, a penalidade judicial pode ter sido desfeita, mas a definição doutrinal permanece. Tudo o que foi decidido infalivelmente por esses Concílios ainda está infalivelmente resolvido.

Isso tem conseqüências sob a corrente lei canônica. Essas coisas que estão tanto divinamente reveladas por Deus quanto propostas como tal pela Igreja não podem ser obstinadamente negadas ou postas em dúvida sem que se incorra em heresia (CIC [1983] 751). A heresia traz consigo uma penalidade de excomunhão automática (latae sententiae) (can. 1041, 2º), embora isso não se aplique àqueles que nunca foram membros da Igreja Católica (can. 11), e, mesmo assim, há uma lista significativa de exceções (can. 1323).

Infelizmente, há pouca chance de que anticatólicos apaixonados como Gendron, White e numerosos outros ficarão atentos aos fatos, admitindo, abertamente, o seu erro, trabalhando, ativamente, para neutralizar o dano que causaram espalhando tanta desinformação sobre esse assunto. Um dia, no entanto — por Deus —, tudo isso será retificado.

[Tradução: Fábio Salgado de Carvalho; original: http://www.catholic.com/magazine/articles/anathema]

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