quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Deve o cristão julgar? — Uma análise neo-testamentária acerca do julgamento

1. Notas preambulares

Recentes discussões no Facebook obrigam-me a escrever um texto sobre o julgamento cristão. Transcrevo o comentário que fiz que gerou tanta polêmica:
"Se você, de fato, crê que a Bíblia é a Palavra inspirada por Deus, por que cargas d'água nunca se deu ao trabalho de lê-la? Cansei de gente dando pitaco naquilo que não sabe nem do que se trata, que fala do Evangelho sempre de segunda mão, mas nunca daquilo que compreendeu por meio do estudo e do enchimento do Espírito diretamente. Adotarei, agora, o critério do cristão inválido. Tem mais de um ano de convertido? Sim? Já leu a Bíblia? Não? Você, então, não pode ser um cristão!" (Comentário feito no dia 25 de outubro de 2011, às 21h05)
Acho lamentável que eu tenha de escrever um texto sobre este assunto. Sinto-me como Paulo, na sua primeira carta aos coríntios, quando diz que não pôde falar como se o fizesse a pessoas espirituais, mas, sim, a pessoas carnais, como a crianças em Cristo (1 Cor. 3.1). Ainda, com respeito à infantilidade de seus interlocutores, Paulo diz: "Irmãos, deixem de pensar como crianças. Com respeito ao mal, sejam crianças; (sic) mas, quanto ao modo de pensar, sejam adultos." (1 Cor. 14.20)[1].

Estou farto de pessoas que dizem ter 10, 20, 30 anos de "conversão", mas que nunca leram, uma vez sequer, a Bíblia. A Palavra é o principal alimento do cristão. Hebreus 5.13 diz que "Quem se alimenta de leite ainda é criança, e não tem experiência no ensino da justiça". Um dos alimentos mais sólidos à disposição do cristão é, justamente, o texto sagrado. Certa feita, ouvi o depoimento de um recém-convertido ao Cristianismo, que havia deixado de ser muçulmano. Em um ano, ele disse que lera a Bíblia 7 vezes e que, para o mundo muçulmano, no qual as crianças crescem com o Corão na cabeça, isso não é muita coisa. Será que o crescimento do Islamismo no mundo deve-se à paixão que o muçulmano apresenta? Sinto falta dessa mesma paixão nos cristãos.

As desculpas são as mais criativas para o relapso com relação à leitura da Bíblia: falta de tempo, desgosto pela leitura, indisciplina... Aproveitando a comparação de Paulo, lembro-me de quando, ainda aos sete anos, li a Bíblia pela primeira vez. Obviamente, não tive um entendimento satisfatório do texto. O meu livro predileto, na época, era o Apocalipse, mas a minha interpretação era completamente fantasiosa. Quando li Mateus 7.1 — "Não julguem, para que vocês não sejam julgados" —, logo, saí repetindo o versículo para qualquer comentário dos meus pais a meu respeito. Descobri, posteriormente, o Estatuto da criança e do adolescente e percebi que seria mais produtivo citá-lo pelas conseqüências legais atreladas ao seu descumprimento.

A minha atitude infantil, que, ao menos, era própria à minha idade, é observada em senhores de 70 anos de idade! Um tipo de justificativa que também é dada é a de que não se conhece a Deus apenas por meio da leitura da Bíblia. Bem, esse tipo de argumento é bem fraco porque ele mesmo afirma que o conhecimento de Deus dá-se por meio da Bíblia, embora não o seja apenas por este meio; então, por que ignorar ou ser negligente a respeito de um meio que sei que pode revelar-me Deus? Com respeito a esse assunto, recomendo o excelente livro do Richard Foster intitulado Celebração da disciplina — o caminho do crescimento espiritual.O livro é genial. Nunca tinha pensado, antes de lê-lo, que o caminho para o crescimento no Cristianismo seria dado por meio do exercício de disciplinas. O Foster, a título de ênfase, obviamente, lista a leitura da Bíblia — em suas palavras, o "estudo" da Palavra. 


2. Nomeação e predicação

Tratando, agora, da explanação que quero dar sobre o assunto do julgamento no contexto do Novo Testamento, creio que é preciso elucidar alguns pontos lógico-lingüísticos. Existem, basicamente, duas maneiras de distinguir-se os objetos — veremos que na acepção do verbo no original grego, há a acepção de "distinguir". A primeira maneira, e a mais simples, refere-se ao ato de nomear ou dar nomes aos objetos. Se tenho dois objetos e quero fazer uma distinção entre eles, posso chamar o primeiro de "A" e o segundo de "B". Tem-se a possibilidade de, mesmo tendo nomes distintos, os objetos serem os mesmos. Neste caso, teremos nomes distintos que têm a mesma referência, mas o que importa aqui é a epistemologia e não a ontologia, ou seja, o ato de conhecer e não como as coisas são em si de fato. 

A segunda maneira mais precisa de diferenciação de objetos é a predicação. Se dois objetos são idênticos, eles têm as mesmas propriedades; portanto, por contraposição, se eles não têm as mesmas propriedades, eles não são idênticos. A partir do princípio da indiscernibilidade dos idênticos, temos um critério para o apontamento de dois objetos distintos: basta atribuir uma propriedade que os dois objetos não compartilhem. 

O que seria, no entanto, predicar um objeto? Ora, quando digo que um objeto o tem a propriedade P, se a minha afirmação é verdadeira, estou dizendo que existe um conjunto de objetos que têm a propriedade P, que eu vasculhei tal conjunto e que encontrei o objeto o nele. 

O ato de nomeação não exige um julgamento, pois posso colar um rótulo sobre um objeto de maneira totalmente arbitrária; por exemplo, posso chamar alguém de "Jacó" apenas para mencioná-lo, mesmo que ele não seja um enganador, uma vez que a etimologia da palavra revela tal significado. O ato de predicação, contudo, tem por pressuposto o julgamento, tendo em vista que quando digo que o objeto o tem a propriedade P, tenho de incluí-lo num conjunto, logo, tenho de decidir se ele faz parte de um conjunto ou não.

3. O verbo grego "Kríno"[2] e as acepções de "julgar"

O verbo grego para julgamento, incluindo seus cognatos, que aparece no texto de Mateus 7.1 surge 114 vezes no Novo Testamento[3] em 74 variações. Fiz uma análise exaustiva dessas 114 aparições, selecionando os casos que são relevantes na nossa análise. O leitor mais atento, talvez, questione a minha seleção, mas explicarei por que não analisarei todos os casos. O verbo grego "kríno" tem, segundo o Dicionário Grego-Português e Português-Grego, do Isidro Pereira, S.J., as seguintes acepções: 
reparar, escolher, distinguir, discernir, decidir, julgar, acusar, condenar, explicar uma questão, interpretar, apreciar, avaliar, resolver um litígio.
Vejam que a própria possibilidade de acepções do verbo já abre margem para que não consideremos alguns versículos. A título de exemplo, vejam o seguinte versículo de Apocalipse 19.11: "Vi o céu aberto e diante de mim um cavalo branco, cujo cavaleiro se chama Fiel e Verdadeiro. Ele julga e guerreia com justiça". Este versículo não tem serventia para o nosso propósito de analisar se o cristão deve ou não julgar.

As acepções do verbo na Língua Portuguesa não diferem muito daquelas do verbo grego. Uma consulta ao Dicionário Houaiss da língua portuguesa revela as seguintes acepções:
tomar uma decisão na qualidade de juiz; sentenciar, pronunciar uma sentença; emitir parecer, opinião sobre alguma coisa ou alguém, formar conceito, opinião; decidir, após reflexão; considerar; decidir que algo pertence a ou se transfere para outrem; adjudicar; supor-se, imaginar-se, considerar-se, pensar-se.


Vê-se que as acepções do verbo de origem latina "julgar" possui uma conotação mais jurídica que o verbo grego "kríno".

4. Uma exegese de Mateus 7

Existem dois modos ou dois tipos de ênfase que se pode efetuar na leitura de um texto. O primeiro tipo diz respeito à leitura vertical. Neste tipo, a leitura do texto é feita dando-se ênfase ao texto em si. O segundo tipo concerne à leitura horizontal, que é feita dando-se ênfase à obra completa do autor. Podemos falar de vários tipos de leituras horizontais e verticais. No caso do texto de Mateus 7, por exemplo, uma leitura vertical teria por escopo apenas o capítulo 7. Uma leitura horizontal teria várias possibilidades de escopo, por exemplo, todo o livro de Mateus, todo o Novo Testamento ou a Bíblia inteira, levando-se em consideração o pressuposto da unidade do texto bíblico a partir da inspiração divina na sua escrita. No tocante a outros tipos de literatura, tendo um autor como Tolstói, por exemplo, uma leitura vertical restringir-se-ia a um livro específico, digamos, "A morte de Ivan Illitch". Uma leitura horizontal levaria em conta todos os textos de Tolstói ou mesmo aqueles textos que influenciaram a sua escrita. 

Tanto a leitura horizontal quanto a vertical têm o seu lugar e sua função. Minha ênfase agora será uma leitura vertical do texto; posteriormente, abrangerei outros textos neo-testamentários. Das 114 aparições do verbo grego "kríno", apenas quatro versículos apresentam o verbo — Mateus 7.1-2; 19.28; 5.40. Veremos, contudo, que o próprio capítulo 7 fornece as ferramentas para uma interpretação adequada. Talvez, por preguiça, as pessoas enfatizam o versículo 1 "Não julguem, para que vocês não sejam julgados" esquecendo-se de todo o resto. 

Em primeiro lugar, é importante enfatizar que lendo apenas o versículo 1, como algumas pessoas fazem, o julgamento de nós mesmos seria proibido. Não deveríamos julgar nem a nós mesmos para que não fôssemos alvo de julgamento. Vejamos, contudo, o versículo 5: "Hipócrita, tire primeiro a viga no seu olho, e então você verá claramente para tirar o cisco do olho do seu irmão.". Ora, para eu tirar a viga do meu olho tenho de olhar para mim mesmo. Lembrem-se que uma das acepções do verbo grego é "reparar" e que qualquer predicação é um julgamento. Ou seja, dizer "Eu tenho uma viga no meu olho" pressupõe um conjunto das coisas que têm vigas nos olhos para que eu possa incluir-me neste conjunto. Outra acepção do verbo grego é "decidir" e é nesse sentido que julgo quando me incluo no conjunto das coisas que têm vigas nos olhos. Estou sendo minucioso quanto a essas explicações, que podem parecer até óbvias, porque algumas pessoas tendem a dizer que isso não é um julgamento.

O mesmo versículo que afirma que devo julgar a mim mesmo diz que devo fazê-lo para quê? Para olhar claramente para tirar o cisco do olho do meu irmão. Ora, o mesmo procedimento que fiz para tirar a trave dos meus olhos é o mesmo procedimento que devo efetuar para tirar o cisco do olho do meu irmão. Devo, portanto, julgar o meu irmão na medida em que "reparo" no cisco dos olhos dele. 

O versículo 6 afirma o seguinte: " 'Não dêem o que é sagrado aos cães, nem atirem suas pérolas aos porcos; caso, contrário, estes as pisarão e, aqueles, voltando-se contra vocês, os despedaçarão.". Ora, o versículo diz que eu devo identificar quem é o cão e quem é o porco, mais uma vez, voltemos à questão da predicação. Que é eu dizer que alguém é cão? É eu olhar para o conjunto dos cães e ver, JULGAR, se o objeto que predico encontra-se naquele conjunto. 

O versículo 15 fala dos falsos profetas, para termos cuidado com eles. Ora, mas para ter cuidado com o falso profeta, antes, devo identificar quem é um falso profeta, portanto, julgar que alguém é ou não um falso profeta. O versículo 16 diz que um modo de reconhecê-los é por meio dos seus frutos. O versículo 17 fala da árvore boa e da árvore ruim. A primeira é aquela que dá frutos bons e a segunda é a que dá frutos ruins, havendo uma impossibilidade de a árvore boa gerar maus frutos e da árvore ruim gerar bons frutos. Se eu vir que alguém dá maus frutos e disser que ele é uma árvore ruim, creio que ninguém estará disposto a dizer que não estou fazendo um julgamento. 

Tenho constatado que por falta de conhecimento da Palavra, as pessoas tomam o politicamente correto por aquilo que é bíblico. Estudos antropológicos e sociais costumam adotar imparcialidade na avaliação das culturas, afirmando que não existe cultura superior ou inferior. O relativismo onipresente no século XX e que persiste no século XXI dá ensejo para que as pessoas não se sintam seguras para taxar o mal de mal e o bem de bem, diferenciar aquilo que é certo do que é errado e isso tem invadido as nossas igrejas e o meio cristão. 

Se reconhecer, como afirma o versículo 20 — "Assim, pelos seus frutos vocês os reconhecerão" — quem é a má árvore e a boa por meio dos frutos não é um julgamento, não sei mais o que pode ser. O versículo 21 continua dando critérios para o reconhecimento do cristão genuíno — por "cristão genuíno" entendo aquele que, de fato, herdará o Reino dos Céus. O versículo 21 afirma que " 'Nem todo aquele que me diz: 'Senhor, Senhor', entrará no Reino dos céus, mas apenas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus.". O versículo dá um critério objetivo para saber quem irá para o céu. Não é aquele que profere que Deus é seu senhor, mas aquele que faz a vontade de Deus. Se eu conhecer alguém que desrespeita praticamente todos os mandamentos e observâncias bíblicas, mas que se diz cristão, e disser que ele não entrará no Reino dos céus, os politicamente corretos dirão que estou julgando-o e citarão Mateus 7.1, sem nunca ter lido o mencionado versículo 21.

Taxar alguém de prudente ou imprudente pode parecer um julgamento que só deve ser praticado por Deus. Há uma grande confusão aqui. Existe uma grande diferença entre praticar um julgamento a partir da minha perspectiva e praticar um julgamento a partir do que diz a Palavra. Os últimos versículos do capítulo 7 afirmam que é prudente aquele que ouve as palavras de Deus e pratica-as e que é insensato quem deixa de fazê-lo. Fazer um julgamento tendo por base o critério objetivo descrito no texto de Mateus é apenas passar a diante um julgamento que já foi feito pelo próprio Deus. 

5. O bom e o mau julgamento

Partiremos, agora, para uma leitura horizontal. Vejam o que diz João 8.15-16: "Vocês julgam por padrões humanos; eu não julgo ninguém. Mesmo que eu julgue, as minhas decisões são verdadeiras, porque não estou sozinho.". Confirmando o que afirmei acima, vejam que o próprio Cristo, no texto de João, fala de dois julgamentos: aquele segundo os padrões humanos e aquele segundo Deus. Lembrem-se de que uma das acepções do verbo grego "kríno" era "decisão" e, de fato, a palavra "decisões" na tradução da NVI faz referência ao mesmo verbo. Quando Cristo diz que não julga ninguém, está dizendo que não o faz segundo os padrões humanos e, de fato, não devemos fazer julgamentos segundo os padrões humanos. 

No capítulo anterior, no versículo 24, vejam o que o mesmo Cristo afirma: "Não julguem apenas pela aparência, mas façam julgamentos justos". O contexto do versículo refere-se ao fato de Jesus curar aos sábados. Vejam que Cristo é claro quando afirma que devemos julgar sim, mas com justiça. Coisa parecida ocorre com a ira no Novo Testamento. Efésios 4.26-27, em referência ao Salmo 4, diz: " 'Quando vocês ficarem irados, não pequem'. Apazigüem a sua ira antes que o sol se ponha, e não dêem lugar ao diabo". Vejam que o versículo não fala para não nos irarmos, mas fala sobre o tipo de procedimento que devemos ter quando tivermos ira. De fato, pode-se investigar como é a ira que advém de Deus e a ira carnal, humana. Fiz este estudo há algum tempo, montando até uma tabela com características. O mesmo poderia ser feito para o caso do julgamento. Vemos que a Bíblia parece indicar que existe um tipo de julgamento que, de fato, deve ser feito, mas outro que não deve ser feito.

6. Textos favoráveis ao julgamento do cristão

O livro de Atos é sempre um livro básico para o entendimento de como era o procedimento da igreja primitiva. A aparição do verbo grego "kríno" é freqüente ao longo do livro, 22 registros, diferentemente do texto de Mateus. A acepção que surge, contudo, na maior parte das aparições é a de "decisão", em contextos que não possuem muita serventia para os nossos propósitos. Quando a acepção é a de "julgamento", sendo o termo grego traduzido pela nossa palavra advinda do latim "judicatio", trata-se ou do termo jurídico, no tocante às prisões de Paulo, ou do julgamento divino e não daquele que deve ser operado pelos cristãos.

O único texto em Atos que nos serve é o do capítulo 4, versículo 19: "Mas Pedro e João responderam: 'Julguem os senhores mesmos se é justo aos olhos de Deus obedecer aos senhores e não a Deus.". Vejam que Pedro e João falam para o sinédrio julgar, mas não de qualquer maneira, mas aos olhos de Deus, que, de fato, deve ser o tipo de julgamento que deve ser procedido pelos homens.

O texto de Coríntios é outro texto repleto de registros, 17 para ser preciso. Comentarei algumas passagens.

"Pois, como haveria eu de julgar os de fora da igreja? Não devem vocês julgar os que estão dentro? Deus julgará os de fora. "Expulsem esse perverso do meio de vocês". (1Cor. 5.12-13)

Ainda no versículo nove do capítulo 5, Paulo diz que não devemos associar-nos a pessoas imorais. No versículo 11, ele diz o seguinte: "Mas agora vos escrevi que não vos associeis com aquele que, dizendo-se irmão, for devasso, ou avarento, ou idólatra, ou maldizente, ou beberrão, ou roubador; com o tal nem ainda comais.". Mais uma vez, somos chamados a identificar quem é devasso, avarento, idólatra, maldizente, beberrão ou roubador. Para não comer com essas pessoas, antes, preciso julgá-las, no sentido de predicá-las, associá-las a um conjunto de pessoas que tenham uma das características listadas.

"Se algum de vocês tem queixa contra outro irmão, como ousa apresentar a causa para ser julgada pelos ímpios, em vez de levá-la aos santos? Vocês não sabem que os santos hão de julgar o mundo? Se vocês hão de julgar o mundo, acaso não são capazes de julgar as causas de menor importância? Vocês não sabem que haveremos de julgar os anjos? Quanto mais as coisas desta vida!" (1 Cor. 6.1-3).

Creio que o versículo acima é bastante claro. Nós, os santos, julgaremos os anjos, quanto mais as coisas menos importantes!

"Estou falando a pessoas sensatas; julguem vocês mesmos o que estou dizendo." (1 Cor. 10.15).

Paulo faz um convite para que as pessoas julguem o que ele diz.

"Julguem entre vocês mesmos: é apropriado a uma mulher orar a Deus com a cabeça descoberta?" (1 Cor. 11.13)

Mais uma vez, Paulo convida as pessoas à prática do julgamento!

Romanos, ainda, reitera a recomendação de Mateus, como podemos ver no texto abaixo:

"Portanto, você, que julga, os outros é indesculpável; pois está condenando a si mesmo naquilo em que julga, visto que você, que julga, pratica as mesmas coisas. Sabemos que o juízo de Deus contra os que praticam tais coisas é conforme a verdade. Assim, quando você, um simples homem, os julga, mas pratica as mesmas coisas, pensa que escapará do juízo de Deus?" (Rm. 2.1-3)

O texto acima de Romanos dá-nos uma dica sobre como deve ser o julgamento que o cristão deve praticar. Primeiramente, o julgamento hipócrita é condenado, na medida em que aquele que pratica o que condena não deve exercer juízo, lembremo-nos que, no texto de Mateus, é-nos aconselhado que retiremos a trave de nossos olhos antes de tirarmos o cisco nos olhos dos outros.

7. Possíveis textos contrários ao julgamento do cristão

Mesmo com todos os textos citados até aqui que, claramente, indicam que o cristão deve praticar o julgamento, algumas pessoas, fazendo uso de textos fora de contexto, assim como citam Mateus 7.1, citam textos no intuito de condenar a prática do julgamento exercida pelo cristão. Vejamos alguns destes textos.

"Irmãos, não falem mal uns dos outros. Quem fala contra o seu irmão ou julga o seu irmão, fala contra a Lei e a julga. Quando você julga a Lei, não a está cumprindo, mas está se colocando como juiz. Há apenas um Legislador e Juiz, aquele que pode salvar e destruir. Mas quem é você para julgar o seu próximo?" (Tiago 4:11-12)

Quando se lê todo o livro de Tiago, que é bem curto, vê-se claramente que Tiago fala de um tipo de julgamento particular, que é o humano, o carnal. O capítulo 3 fala sobre o domínio que devemos ter da nossa língua. Vemos que o referido capítulo fala de fofoca, da língua que é capaz de amaldiçoar e de abençoar. Quando, no capítulo 4, Tiago fala sobre o julgamento, ele, com a conjunção grega "kai", que foi traduzida por "ou" pela NVI — que no caso da Língua Portuguesa seria uma disjunção inclusiva e não exclusiva —, restringe-o a um tipo específico de julgamento que, aqui, é falar contra o irmão em Cristo, falar mal, maldizer — o verbo no original é "katalaleo", que tem a acepção de "caluniar". O julgamento de que fala Tiago, portanto, é a calúnia.

Contra qual lei a pessoa que calunia afronta-se? A resposta está no capítulo 2, versículo 8, "Se vocês de fato obedecerem à lei real encontrada na Escritura que diz: 'Ame o seu próximo como a si mesmo', estarão agindo corretamente.". A tradução, a meu ver não está boa. O versículo 12 diz que há apenas um Legislador e um Juiz, capaz de salvar e destruir. O enfoque, portanto, deveria ser no papel condenatório. A última frase seria melhor traduzida se o verbo "condenar" fosse utilizado no lugar de "julgar". De fato, como vimos nas acepções do verbo grego, "condenar" é uma das acepções possíveis e vemos que mesmo na acepção de condenação o uso no texto dar-se-ia de maneira bem restrita, já que fala no contexto de salvação e destruição. Caluniar, portanto, teria o mesmo poder condenatório que o julgamento divino. O capítulo 3 ilustra bem tal poder da calúnia.



"Aquele que come de tudo não deve desprezar o que não come, e aquele que não come de tudo não deve condenar aquele que come, pois Deus o aceitou. Quem é você para julgar o servo alheio? É para o seu senhor que ele está de pé ou cai. E ficará de pé, pois o Senhor é capaz de o sustentar." (Rm. 14.3-5);
"Portanto, você, por que julga seu irmão? E por que despreza seu irmão? Pois todos compareceremos diante do tribunal de Deus." (Rm. 14.10);

"Portanto, deixemos de julgar uns aos outros. Em vez disso, façamos o propósito de não colocar pedra de tropeço ou obstáculo no caminho do irmão." (Rm. 14.13)


O texto de Romanos, no capítulo 14, começa fazendo uma distinção entre fortes e fracos na fé. Ora, se no primeiro versículo, é dito ao forte na fé que o fraco na fé deve ser aceito, já existe uma pressuposição de que, ao menos, um julgamento no tocante àquele que é fraco ou forte deve ser feito. Os questionamentos dos textos acima não seriam, portanto, com respeito a todo e qualquer julgamento. Quando, no versículo 4, Paulo pergunta quem somos nós para julgar o servo alheio, ele está falando, como se vê no versículo anterior, do desprezo que é dirigido aos cristãos que comem ou deixam de comer algo. O tipo de julgamento condenado por Paulo em Romanos 14 é aquele superficial que não se baseia no coração e nas intenções, mas apenas naquilo que, exteriormente, alguém faz ou deixa de fazer.


"Pouco me importa ser julgado por vocês ou por qualquer tribunal humano; de fato, nem eu julgo a mim mesmo. Embora em nada minha consciência me acuse, nem por isso justifico a mim mesmo; o Senhor é quem me julga. Portanto, não julguem nada antes da hora devida; esperem até que o Senhor venha. Ele trará à luz o que está oculto nas trevas e manifestará as intenções dos corações. Nessa ocasião, cada um receberá de Deus a sua aprovação." (1 Coríntios 4:3-5)

Confesso que não tenho uma compreensão plena do texto acima. Consultei vários comentários bíblicos, mas nenhum deles convenceram-me; no entanto, o interessante é que todos eles destacam que o cristão tem, de fato, o papel de julgar, embora não seja qualquer tipo de julgamento. O comentário que mais pareceu esclarecer o texto, a meu ver, foi o da Bíblia do Peregrino, que afirma que aqueles que estão a serviço imediato de Deus não estão submetidos a um julgamento meramente humano.

O meu entendimento do texto é que no capítulo 3, inicia-se uma discussão sobre a divisão na igreja. Alguns se diziam servos de Apolo, outros de Paulo e alguns outros do próprio Cristo. Essa passagem é interessante na medida em que Paulo desaprova inclusive aqueles que se dizem ser de Cristo e não de Apolo ou de Paulo, mas isso é um assunto para uma postagem futura. A questão é que Paulo fala que apenas o julgamento final de Deus poderá revelar, de maneira definitiva, qual obra será aprovada ou não. O problema de uma palavra ter várias acepções é que na tradução dela podem ocorrer equívocos. Se estivesse na posição de tradutor, escolheria o termos "condenar" para referir-me ao ato de julgamento divino no juízo final ou procuraria manter certa uniformidade na tradução do texto no tocante às diferentes acepções do mesmo termo. De fato, não cabe ao homem o papel de julgar ou condenar alguém para o paraíso ou o inferno, mas a eliminação de tal papel não elimina outras possibilidades de julgamento, como, de fato, vimos no decorrer deste texto.

Paulo afirma nos versículos acima que a medida do julgamento não deve ser dada por nós mesmos. Quando ele afirma que pouco importa que ele fosse julgado pelos homens ou por tribunais humanos e que nem ele julgava-se a si mesmo, ele falava que os termos do julgamento deveriam ser divinos e não humanos. Quando baseamos o nosso julgamento na Palavra, é isso que estamos fazendo. Do que Paulo estaria falando quando diz para esperarmos a hora devida. Que tipo de julgamento possui uma hora marcada? Ora, é justamente o julgamento condenatório divino. De fato, não temos acesso às intenções genuínas dos corações das pessoas. Quando Mateus diz-nos para julgarmos de acordo com as obras, o tipo de julgamento que efetuamos é meramente externo, tem em vista os frutos produzidos pelas pessoas. O julgamento que podemos fazer, portanto, sempre é baseado na exterioridade, embora ele revele algo da interioridade, pois, afinal, a árvore má não pode gerar bons frutos.

Creio que ou Paulo faz uso de uma hipérbole no texto ou, de fato, fala de um julgamento restrito, pois, em Romanos, ele recomenda que não sejamos pedra de tropeço no caminho de nossos irmãos — Rm. 14.13 — e em 2 Coríntios 6.3, afirma que não devemos ser motivo de escândalo a ninguém. Paulo, portanto, importa-se sim com a maneira como é julgado pelos outros, de modo que ele não poderia estar falando de todo e qualquer julgamento quando afirma que pouco o importava ser julgado pelos homens.

8. Conclusão 

Vimos, portanto, que o cristão é chamado a julgar, mas não de qualquer maneira. A Bíblia diferencia o julgamento humano, que costuma ser hipócrita, do julgamento divino, conforme a vontade de Deus. O critério para o julgamento do nosso próximo não deve ser aquilo que achamos ou pensamos, mas aquilo que está na Bíblia. Somos, sobretudo, chamados a praticar o julgamento de nós mesmos antes de prestarmo-nos ao julgamento de quem quer que seja. Nosso julgamento, no entanto, é impreciso, pois sempre se baseia nas externalidades, nos frutos, obras e ações das pessoas. Apenas Deus tem a capacidade de um julgamento preciso das verdadeiras intenções dos corações; contudo, mesmo diante da nossa falta de acurácia, temos um método bastante eficaz de praticarmos o julgamento, uma vez que as árvores ruins, de acordo com o texto de Mateus, não podem gerar bons frutos. 

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[1] Quando não for explicitado, a tradução utilizada será a da Nova Versão Internacional.
[2] Peço desculpas pela transliteração. Ainda não domino a técnica.
[3] Recomendo o excelente programa Interlinear Scripture Analyzer, que está disponível gratuitamente no endereço: http://www.scripture4all.org/

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Como identificar um analfabeto em 10 erros


Antes de iniciar o meu texto propriamente dito, é melhor enfatizar, em tempos em que o politicamente correto impera, que de maneira alguma estou agredindo o Tiririca de alguma forma ao fazer uso da imagem dele numa postagem sobre o analfabetismo. Usei-o porque ele teve problemas para provar que era alfabetizado nas últimas campanhas eleitorais; então, ele acaba sendo um símbolo de certa maneira.

Tivemos, recentemente, uma polêmica que envolvia o uso da norma culta num livro do MEC. Algumas pessoas afirmaram, na ocasião, que o importante é comunicar-se e que fazer uso das regras gramaticais é preciosismo. Uma pessoa que faz esse tipo de afirmação desconhece por completo o significado da norma culta. Pretendo abordar o assunto aqui de forma mais esmerada em outra oportunidade. Alguns argumentos utilizados para desqualificar a norma culta, como, por exemplo, atrelando-a à imposição de uma determinada classe dominante, são completamente equivocados, uma vez que a primeira gramática que se tem notícia, surgida na Índia, tinha pretensões religiosas. Acreditava-se que a língua sânscrita era a língua dos deuses e por isso nasceu a iniciativa de preservá-la por meio de uma gramática.

Outro mito em torno da norma culta é referente à sua função única de fazer referência à língua falada: muito embora ela tenha sido, nas origens, uma forma de registro da oralidade, ela possui sua própria estrutura e riqueza, independentemente da linguagem oral. Um bom exemplo para entender o que ocorre com a norma culta é observar a história do desenvolvimento da Lógica. Esta surgiu, primeiramente, para modelar a linguagem natural. Mesmo com todo o avanço que se observou no campo, a fidelidade da Lógica à linguagem natural é mínima, devido à sua complexidade. O que se observa nos diversos sistemas lógicos é uma abundância de estruturas que fogem à mera descrição da linguagem natural.

Algumas pessoas usam como desculpa o fato de estarem num ambiente coloquial ou de, simplesmente, estarem falando em vez de escrevendo. Não falarei de modo dedutivo aqui, antes que me acusem de falacioso — por falar nisso, a falácia, como conhecemos, restringe-se apenas ao ambiente dedutivo, mas isso é assunto para outra ocasião —, mas a minha experiência demonstra que pessoas que se utilizam desse tipo de argumento, freqüentemente, cometem os mesmos erros na escrita. De qualquer forma, se alguém tem de saber as regras para utilizá-las em momentos específicos, por que não se valer das regras sempre? A linguagem culta fornece precisão e evita ambigüidades. Os erros que comentarei aqui, entretanto, são próprios do âmbito da escrita.

É importante ressaltar também que a linguagem é pública e não privada. Quando se faz uso de uma língua, está-se utilizando algo que não foi criado pelo falante. Se eu tomo por empréstimo um instrumento como um violão, se eu quiser tocá-lo, terei de seguir certas regras na medida em que faço uso de algo que não criei. Não posso querer que um violão usual tenha apenas uma corda, ou que ele tenha uma extensão de escalas maior que aquela disponibilizada e assim por diante.

Foi por meio da leitura de Wittgenstein e de Sartre, no meu terceiro ano do Ensino Médio, que me dei conta de que deveria aprender e respeitar a norma culta. O meu raciocínio da época deixo para outra postagem. A questão é que até então não tinha a preocupação de seguir a norma culta; inclusive, mesmo depois da leitura mencionada, demorei alguns anos para respeitar algumas regras específicas, como, por exemplo, as referentes à colocação pronominal, que, inclusive, encontram-se na listagem que farei. Antes da minha preocupação sistemática, contudo, não cometia erros muito graves devido à minha paixão pela leitura, que sempre me ajudou, e devido, confesso, a certo talento natural, que pode ser observado quando, já na primeira série do Fundamental, ganhei um concurso de redação.

Escolhi 10 erros e comentá-los-ei no decorrer da listagem. É importante ressaltar alguns pontos. Primeiramente[1], não sou perfeito, cometo erros e, inclusive, prefiro ser corrigido a persistir no erro, contrariamente à maioria das pessoas. Comentei, no Facebook, certa vez, que só se pode sentir diminuído ao ser corrigido aquele que é perfeito, pois o erro é pré-condição da existência humana. Admito que não gosto de errar; no entanto, quando alguém aponta um erro meu, fico tão traumatizado que nunca mais volto a cometê-lo. Não existe melhor método de aprendizado. A maior parte das pessoas, no entanto, parece ter problemas sérios para admitir os seus erros e retratar-se, gastando tempo tentando arrumar algum jeito de disfarçar o seu equívoco. Segundamente, para ser analfabeto não é necessário o desconhecimento das 10 regras listadas, mas, se tendo em vista que elas são básicas, o desconhecimento de apenas uma delas já o torna analfabeto. Caro leitor, se você desconhecer algum dos usos que listarei, não se sinta ofendido, mas tenha em mente o que falei sobre o erro. Sempre é tempo para aprender! Por último, não tenho a pretensão de explicar pormenorizadamente cada um dos tópicos, mas apenas de citar os principais erros que vejo no dia a dia.

1. Uso dos porquês
Frustra-me ver o uso que se faz dos porquês. Tentarei explicá-los a partir do que sei sem me apoiar em algum manual. Usa-se junto com acento — "porquê" — sempre que estiver substantivado. Usa-se separado — "por que" sempre que se puder substituir pela expressão "por qual motivo", levando acento sempre que estiver próximo a uma pontuação. O tradicional "porque" é usado sempre que for usado em sentido explicativo.

2. "Afim" ou "a fim" e acento de monossílabos
É muito comum ver as pessoas errando o uso de "afim" e "a fim", principalmente, dizendo, erroneamente, que estão "afim de alguém" ou "afim de fazer algo". A maior parte das pessoas nunca terá de usar "afim". Se for pra chutar, amigo, use "a fim".

Quanto aos monossílabos, a regra mais elementar de acentuação é a de que monossílabos tônicos terminados em "i" e "u" não levam acento. É comum ver gente acentuando "vi", "li", "Ju" — abreviação de "Juliana" — e mais comum ainda é ver gente mal educada, que, obviamente, tinha de ser analfabeta, escrevendo em portas de banheiro a palavra que designa o orifício anal com acento, para não ser mais específico.

3. Regência do verbo "lembrar
Quem se lembra, lembra-se de algo; quem lembra, lembra algo [2]. Simples!

4. Duplo particípio
Alguns verbos possuem duplo particípio — um irregular e outro regular. O primeiro tipo é usado, de forma geral, na voz passiva, acompanhado dos auxiliares "ser" e "estar"; o segundo, na voz ativa, acompanhado dos auxiliares "ter" e "haver". Existem exceções quando se usa o verbo na voz ativa, como, por exemplo, os verbos "pagar", "pegar" ou "ganhar", mas, se você usar a regra geral, não tem erro. Por exemplo, "tinha pegado" e "fui pego".

5. Tempo subjuntivo
O erro que se comete no uso deste tempo é um ótimo critério para saber se alguém, de fato, tem um mínimo conhecimento da Língua Portuguesa. Fico até emocionado quando ouço alguém falando corretamente ou escrevendo da maneira correta. Refiro-me, principalmente, ao futuro do subjuntivo, quando usado em orações subordinadas adverbiais. Para ser mais claro, vejam o exemplo corrente: "Quando eu ver você, a gente se fala". O correto seria: "Quando eu vir você, a gente se fala".

6. Uso do infinitivo
Vejo, diariamente, as pessoas escrevendo expressões do tipo "nada a vê", "se eu olha pra você", em vez de "nada a ver" e "se eu olhar pra você".

7. Colocação Pronominal
Como eu já disse, até pouco tempo, dispensava o seguimento das regras referentes à colocação pronominal, pois achava-as desnecessárias. Um dia, ouvindo uma canção, da qual, infelizmente, não me lembro, percebi a importância da regra quando vi que, se dispensasse a regra, o sentido seria alterado. É até aceitável que as pessoas não sigam as regras de colocação pronominal quando escrevem em ambientes coloquiais, sendo coerentes com a predominância da próclise do Português falado no Brasil, mas o que é inaceitável é quando elas usam a ênclise ou a mesóclise quando o uso é proibido pela norma culta. Um exemplo seria "Não faça-o" em vez de "Não o faça", uma vez que expressões negativas são atrativas. Pior do que gente analfabeta é gente analfabeta que quer fazer-se de culta.

8. Vírgulas entre sujeito e predicado
O conhecimento do que é um vocativo, infelizmente, é raro. Uma simples vírgula pode mudar todo o sentido de uma frase como "Pedro salva-me" ou "Pedro, salva-me". Na primeira frase, faço uma descrição, enquanto na segunda peço a Pedro que me salve. Um dia desses, lendo um poema na internet — e não poesia, como alguns pensam —, vi que o sujeito separou sujeito de predicado por meio da vírgula. Algo do tipo: "O céu, é azul". Tudo bem que existe licença poética no âmbito poético, mas destaco algo que sempre costumo dizer: não se pode derrogar o que não se conhece! Qualquer pintor ou escritor que subverteu as regras clássicas tinha conhecimento delas antes de contrariá-las. Para destruir um muro, é preciso, antes, construí-lo.

9. Uso do cedilha
Descobri uma lógica no uso do cedilha há tempos que nunca li em lugar nenhum. Você só usa o cedilha se a sua ausência acarretar pronúncia diferente. Por exemplo, por que "bagaço" tem "ç"? Experimente retirá-lo. Você falaria a palavra de maneira diferente. Se as pessoas soubessem dessa lógica, não escreveriam barbaridades como "voçê". O pior é ver gente escrevendo "" em vez de "vc".

10. Concordância
O último erro que listei é o que daria para citar mais exemplos. Concordo que o assunto tem a sua complexidade — por exemplo, saber utilizar a concordância no caso da conjunção "ou" ou no caso de porcentagens; no entanto, dois fatores pesam contra a pessoa que comete esse tipo de erro. O primeiro refere-se ao fato de que o aprendizado da Língua Portuguesa inicia-se desde o ingresso no primeiro ano do Fundamental. Se alguém terminar o Ensino Médio, o sujeito passou, em média, no mínimo 11 anos estudando o assunto. Em segundo lugar, vivemos tempos em que qualquer pessoa tem acesso à informação. A internet está aí pra isso; então, não existe desculpa. Pensei em dar uma olhada no Facebook ou no Twitter para encontrar exemplos, mas desisti.


[1] A palavra "primeiramente", incrivelmente, não está dicionarizada, não sendo registrada no VOLP. O excelente professor Claudio Moreno, no entanto, convenceu-me a usá-la, incluindo as generalizações "segundamente", "terceiramente" e assim por diante. Vejam o texto do mencionado professor: http://wp.clicrbs.com.br/sualingua/2010/03/28/primeiramente/ .

[2] Para o uso que fiz das vírgulas na minha explicação, recomendo o seguinte texto:
http://wp.clicrbs.com.br/sualingua/2010/01/31/quem-sabe-sabe/


sábado, 15 de janeiro de 2011

Mosquitos Otólatras


Para quem não tem afinidade com os processos de formação das palavras e com os radicais gregos, explicarei o título da postagem de hoje. Como não conheço uma palavra, na Língua Portuguesa, para designar quem tem veneração por ouvidos, criei o termo "otolatria". No meu Ensino Médio, aprendi que o termo correto para designar o local onde compramos óculos é "Óptica" e não "Ótica", embora alguns dicionários já tenham registro dos dois termos como sinônimos. O radical grego em "Ótica" é o mesmo da palavra "Otite", que usamos para referir-nos à inflamação nas cavidades da orelha. "Otos" é, portanto, orelha em Grego. "Latria" vem do Grego "latreia", que significa adorar. "Otólatra" é, por conseguinte, aquele que adora orelhas.

Quem acompanha meu blogue sabe que não tenho uma história muito feliz com insetos [1]. Sempre me perguntei por que os mosquitos fazem questão de voar sobre nossos ouvidos. Já fiz alguns experimentos. Como eu durmo coberto, pode ser que o mosquito tenha algum modo de rastrear a pele. Seria provável que ele sobrevoasse o meu rosto, já que seria a única parte descoberta, mas justamente os ouvidos? Experimentei ficar descoberto para ver se o mosquito ficaria mais interessado por outras partes da minha pele, mas, freqüentemente, meus ouvidos eram incomodados.

Resolvi, por curiosidade, procurar o motivo do fetiche dos mosquitos por ouvidos. Descobri [2] que não existe uma razão específica para o inseto atacar a região da nossa orelha, mas que ele é atraído pelo gás carbônico liberado pelo nosso nariz, o que aumentaria a probabilidade de ele sobrevoar nossas orelhas. Na minha pesquisa, encontrei algumas curiosidades. Entre elas, um livro de contos intitulado "Por que os mosquitos zunem no ouvido da gente" [3], um romance de 456 páginas intitulado "A costa do mosquito", um poema do Vinicius de Moraes intitulado "O Mosquito" [4] e um poema da Cecília Meireles intitulado "O mosquito escreve" [5].

Na madrugada do último domingo, dia 9, estava tentando dormir e, como de costume, fui perturbado por um mosquito. Costumo dar uma chance aos seres vivos de permanecerem vivos, mas parece que, como se já não bastasse a curta vida dos insetos, estes procuram a morte. Depois de ser importunado repetidas vezes, tomei a decisão de livrar-me do mosquito de maneira definitiva. O fim todos sabem: um inseto morto lançado num vaso sanitário.

Depois do episódio, percebi que o incidente seria um bom objeto de literatura, talvez um conto. Tenho me voltado, ultimamente, para o gênero: acredito que ele se ajusta melhor à minha escrita, uma vez que não tenho concisão suficiente para expressar em tão poucas palavras como num poema e nem paciência, tempo e recursos suficientes para escrever um romance. A leitura dos contos do Machado de Assis também tem me empolgado com o gênero. Na medida em que começava a escrever, contudo, acabei visualizando um poema. Pensei, inicialmente, num soneto, mas confesso que ainda não desenvolvi a minha paciência para trabalhar as frases. Quando componho canções, a mesma falta de paciência para escrever as letras e ver logo o projeto acabado acomete-me. O imediatismo do nosso tempo pós-moderno talvez seja o responsável por essa pressa. O mesmo ocorre com a questão da métrica. Tentei, de início, escrever de forma metrificada, mas, depois, acabei desistindo.

O título que dei ao poema, depois de pronto, foi "Mal dito mosquito". Descobri, no entanto, um poema na web, coincidentemente, intitulado "Maldito mosquito!" [6]. Enfim, aí está o poema que confeccionei:

Mal Dito Mosquito
(Fábio Salgado)

Rouba meu sono um mosquito maldito.
Com os olhos fechados, ouço um zumbido.
Com rasantes vôos, penetra-me o ouvido
Um inseto que deve achar-se inaudito.

Sugavas-me o sangue de qualquer lugar,
Mas logo os ouvidos foste-me perturbar?
Que tem a cera de tão peculiar
Para não te entreteres em outro lugar?

Projeto de mosca, tua hora é chegada!
Como uma criança malcriada, toma uma palmada!
Vem de encontro à minha mão,
Não fujas em vão!

De todos, inevitável fim é a morte.
Não tivésseis meus ouvidos alvejado,
Talvez, teríeis outra sorte.