terça-feira, 6 de dezembro de 2016

São Paulo rezou por um homem morto: Onesíforo (Dave Armstrong)

“Que o Senhor difunda sua misericórdia sobre a família de Onesíforo, pois ele me reconfortou muitas vezes e não se envergonhou das minhas cadeias. Pelo contrário, desde que chegou a Roma, procurou-me com solicitude e me encontrou. Que o Senhor lhe conceda encontrar misericórdia junto ao Senhor naquele Dia. E todos os serviços que ele me prestou em Éfeso, tu os conheces melhor do que ninguém” (2 Timóteo 1.16-18).
Os católicos rezam pelas almas do Purgatório a fim de ajudá-los em sua jornada através dele rumo ao Céu. Na oração pelos mortos, é muito razoável argumentar que algum tipo de estado intermediário é pressuposto porque seria inútil rezar por aqueles que estão no Inferno (a oração não pode mais os ajudar) e desnecessário rezar por aqueles que estão no Céu (eles têm tudo de que precisam). Esse versículo oferece suporte bíblico para essa crença.

A conhecida obra protestante “The New Bible Commentary” (3rd edition, 1970) assume a surpreendente posição de que Onesíforo está provavelmente morto (citando 2 Tm. 4.19), mas afirma que Paulo estava orando pela sua conduta durante a vida. O preeminente “Jamieson, Fausset, and Brown Commentary” (1864) também sustenta que Paulo estava orando, mas, obviamente, não por um homem morto porque, afinal de contas, “em nenhum outro lugar, Paulo ora pelos mortos, o que é fatal para a teoria [...] de que ele estava morto.”. Esse é o raciocínio circular: simplesmente, assume-se aquilo que se alega estar provado.

O estudioso grego A. T. Robertson (“Word Pictures in the New Testament, 1930, Vol. IV, 615) concede que Onesíforo estava morto, mas, desesperadamente, descreve a oração de Paulo a ele como um “desejo” (essencialmente, uma distinção sem uma diferença). A “International Standard Bible Encyclopedia” (1939) faz a mesma (não dá pra descrever de outra forma) racionalização, usando a descrição “desejo piedoso” (Vol. IV, 2195). O famoso comentador presbiteriano Matthew Henry (1662-1714) e Albert Barnes (1798-1870) assumem, fortuitamente, que Onesíforo não estava morto, uma vez que Paulo orou por ele — novamente, fazendo-se suposições prévias sobre o que é possível em primeiro lugar, o que equivale à eisegese ou a ler nas Escrituras noções que não estão lá. João Calvino, por sua vez, negou que ele estivesse morto.

Nem todos concordam

A “jogada” e o enigma para todos esses comentadores é a recusa em aceitar as duas coisas conjuntamente: um homem morto e alguém orar por ele. Então, se eles pensam que ele estava morto, eles negam que se orou por ele. Se eles reconhecem que se tratou de uma oração, eles negam que estava morto. 

Nem tudo, contudo, está perdido. Encontrei vários comentaristas anglicanos e alguns poucos outros (graças, em grande parte, ao “Google Books”) que aceitaram ambos os fatores conjuntamente e que afirmam que Paulo orou por um homem morto. Os comentaristas anglicanos incluem Alfred Plummer (1841-1926), no “The Expositor’s Bible”, James Maurice Wilson (1836-1931), Sydney Charles Gayford (em 1905), John Henry Bernard (1860-1927), Charles John Ellicott (1816-1905) e J. N. D. Kelly (1909-1997), em “A commentary on the Pastoral Epistles” (London: A&C Black, 1963, p.171). Este último afirma:
“Na suposição, que deve ser correta, de que Onesíforo estava morto quando as palavras foram escritas, temos aqui um exemplo, único no Novo Testamento, de oração cristã por um falecido [...], a recomendação de um morto à divina misericórdia. Não há nada de surpreendente no uso de Paulo de tal oração, pois a oração pelos mortos tinha sido sancionada nos círculos farisaicos, por qualquer razão, desde a data da passagem de 2 Mc. 12.43-45 (metade do primeiro século antes de Cristo?). Inscrições nas catacumbas romanas e em outros lugares provam que a prática estabeleceu-se entre os cristãos desde muito cedo.”.
William Barclay (presbiteriano liberal: 1907-1978) concorda em suas “Letters to Timothy, Titus, and Philemon”. O mesmo ocorre com o bastante conhecido historiador da igreja reformado protestante Philip Schaff (1819-1893) em “The International Illustrated Commentary on the New Testament” (1889, Vol. IV, 587). Outros comentadores que concordam incluem W. Robertson Nicoll, “The Expositor’s Greek Testament” (1951), e o renomado Henry Alford, “The Greek Testament” (1958).

Leitura na Escritura

O que devemos concluir a partir de toda essa confusão de várias opiniões protestantes? Fico sempre feliz em mostrar a informação e em permitir aos leitores chegar às suas próprias conclusões, mas concluo (se é que isso vale de alguma coisa) que a passagem é bem direta. Portanto, quando um comentador decide que Onesíforo não está morto ou que ele estava, mas que não se orou por ele, trata-se de um exemplo de eisegese, deixando-se que a parcialidade denominacional interfira no comentário bíblico objetivo. 

Nossos irmãos separados, freqüentemente, assinalam que eles recorrem apenas à Bíblia como a sua única fonte de autoridade e regra de fé infalível, que eles, meramente, deixam-na falar por si mesma.

No entanto, quando se trata de uma questão como essa, em que o texto bíblico parece discorrer de forma contrária a um dogma denominacional protestante (i.e. , que a oração pelos mortos é inadmissível), há uma abundância de “explicações” e de negações do que parece estar claramente presente na passagem. 

A parcialidade nunca deveria nos surpreender. É natural à mente humana e a todos nós (incluindo os católicos) termos isso. Todos nós também trazemos conosco tradições prévias ao nosso comentário bíblico não importa o quanto possamos tentar negá-lo. Não é uma questão meramente hipotética ou condicional, mas se trata de qual tradição está presente ao lermos o texto bíblico.

Sustento que os católicos são tão livres como qualquer outro cristão (se não for mais) para, simplesmente, deixar a Bíblia falar por si mesma. Se, realmente, ela ensina a oração pelos mortos nessa passagem, nós aceitamos isso como parte da revelação inspirada de Deus. Isso corresponde ao ensino dogmático/doutrinário católico, que se atrela ao Purgatório. Na minha experiência de mais de 24 anos de apologética católica, isso sempre acontece quando estudamos a Bíblia. Pode ser pouco conhecido e freqüentemente negado pelos protestantes, mas é verdade e eu tenho mostrado isso com muitos exemplos no meu próprio trabalho, como este presente.