sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Sobre a incapacidade de empatia desinteressada



   "Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados!"
Mateus 5:6-7

"Mas ele, querendo justificar-se, perguntou a Jesus: 'E quem é o meu próximo?'"
Lucas 10.29

   Minha postagem anterior, a última de 2013, foi sobre a inescrutabilidade das comunicações humanas. Pretendo, hoje, continuar o tema com outro enfoque. Quando citei Josemaria Escrivá, dizendo que "Quando não há retidão naquele que lê, torna-se difícil que descubra a retidão daquele que escreve", poder-se-ia ver implícito o pressuposto de que tem de haver uma certa empatia entre quem lê e quem escreve, entendendo aqui leitor e escritor de modo bem amplo, o que abarcaria, também, o âmbito da mera oralidade. No que concerne à empatia, descobri, recentemente, que a filósofa Edith Stein trata da questão a partir da escola fenomenológica, mas ainda não consegui ler o seu livro On the problem of empathy

   O meu orientador no mestrado, o professor Julio Cabrera, disse-me, certa feita, o seguinte: "quando descrevo o inferno eu nunca me isento dele". Faço minhas as suas palavras. Nunca teço julgamentos sem antes procurar enquadrar-me neles a fim de ver se eu mesmo não estaria no escopo deles. Esse critério de autorreferência foi algo que aprendi muito bem com a escola analítica na Filosofia. Para exemplificar isso, reproduzirei um diálogo que tive em 2004 com uma colega minha do terceiro ano do Ensino Médio. Antes de reproduzi-lo, permitam-me contextualizá-lo. Naquele ano, a UnB comunicou-nos que os seus vestibulares iriam ter um revezamento entre os cursos diurno e noturno no que diz respeito ao curso de Direito; em outras palavras, no semestre em que houvesse vagas disponíveis para o curso de Direito diurno, não haveria vagas para o curso noturno e vice-versa. Vários colegas, indignados, resolveram, então, organizar um protesto no Congresso Nacional. Percebendo um desinteresse da minha parte, uma colega iniciou o seguinte diálogo:

— Você não vai ao protesto, Fábio?
— Não.
— Por quê?
— Prestarei vestibular para Física e não para Direito.
— Que absurdo! Poderia ser o seu curso.
— Sim. Poderia, mas não é. No dia em que resolverem fazer isso com Física, eu protesto. Eu vou perder o meu dia gritando nesse sol quente? 
— Que egoísta!
— Quem mandou todo mundo resolver cursar Direito? Há inúmeros outros cursos. Se as pessoas resolvessem fazer aquilo que realmente gostam em vez de seguir a modinha, pensar só em dinheiro ou seguir as expectativas dos seus pais, a UnB não precisaria fazer isso porque as demandas não seriam impossíveis de serem satisfeitas. 

   Na verdade, o diálogo acima sugere uma série de questões sobre as quais penso em escrever no futuro, como, por exemplo, a questão do funcionalismo público — quem mora em Brasília entenderá imediatamente quais seriam as discussões sobre o assunto. Antes de falar sobre o que quero trazer à tona com a lembrança do diálogo acima, é importante ressaltar alguns pontos. O primeiro deles é que desde muito cedo eu era cético quanto às manifestações, até porque eu via muitos colegas movidos por um entusiasmo momentâneo completamente irracional em uma época em que eu defendia um racionalismo bastante radical. O segundo ponto é que ainda hoje eu tenho certo desprezo pela área do Direito — em 2007, cito o que chamo de "binômio Direito-Medicina": http://www.fotolog.com.br/fabiosal/20562039/ . Não é que eu tenha desinteresse pela área: afinal, é realmente difícil encontrar qualquer assunto pelo qual eu não me interesse. A realidade é apenas uma. Quando a dividimos em áreas, é apenas para facilitar as nossas vidas, algo que Descartes deixava muito claro nas suas Regras para a direção do espírito, deixando, contudo, muito claro que a perspectiva holística de um conhecimento unificado sempre deveria nortear as sucessivas compartimentalizações do conhecimento que fossem feitas por razões meramente pragmáticas. Recentemente, inclusive, pedi aos meus colegas do Direito que me indicassem livros sobre a área para que eu pudesse empreender estudos mais sérios e aprofundados sobre o tema. O busílis da questão, entretanto, está em um fato que tenho verificado com o decorrer dos anos. Praticamente todas as pessoas que conheci que se enveredaram pela área do Direito fizeram-no por uma das duas razões: interesse meramente financeiro, influências familiares. Nunca conheci ninguém — antecipo-me a futuras possíveis contestações aqui ou acusações de generalizações dizendo que não estou, obviamente, fazendo deduções, mas falando sobre posturas que tenho visto como sendo predominantes — que tivesse se apaixonado pela área sem ter nenhum familiar na área, ou incentivos, que optaria por fazer Direito mesmo que fosse uma área sem retornos financeiros. A quase totalidade dos casos que conheci foi de pessoas que, artificialmente, após ingressarem no curso por razões completamente pragmáticas, acabaram desenvolvendo gosto pela área de modo totalmente ad hoc. Este parágrafo foi apenas uma digressão de um idealista apaixonado pelo que escolheu fazer, mas prossigamos com o que realmente nos interessa nesta postagem.

   Eu poderia ter todas as razões do mundo para não gostar da idéia de fazer protestos. Eu poderia, de fato, acreditar que era absurdo que tantas pessoas insistissem em cursar Direito, havendo tantos outros cursos disponíveis, mas eu nunca poderia ter deixado de ser solidário e de ter procurado agir se eu acreditasse que aqueles colegas que optaram pelo curso de Direito estavam sendo prejudicados de algum modo — se aquilo realmente se tratava de uma injustiça ou não é outra discussão que não vem ao caso neste momento.

   A questão da empatia surgiu-me observando diversas situações recentes. Fico muito impressionado como a grande maioria das pessoas apenas consegue solidarizar-se quando tem alguma questão pessoal envolvida ou quando algo naquilo que elas resolvem defender diz-lhes respeito de alguma forma direta ou indireta em termos de interesses. Publiquei uma notícia sobre a Cláudia Jimenez no meu Facebook comentando o fato de ela ter decidido ter relações heterossexuais em detrimento de relações homossexuais dias atrás e uma colega que não falava comigo há anos veio fazer protestos inbox. Outros colegas protestantes divulgaram um texto sobre um protesto entre os batistas, por conta de eventos recentes no contexto brasileiro, que trazia menções desrespeitosas ao Catolicismo, mas nenhum deles sentiu-se no dever de fazer qualquer correção. A coisa tem se repetido com assuntos diversos. Quando falo sobre o funcionalismo público, funcionários públicos fazem os seus protestos; quando digo algo de cunho conservador sobre o Socialismo, esquerdistas aparecem com seus faniquitos e assim por diante.

   Muitos meses atrás, li um texto em um jornal batista sobre o homossexualismo. Embora eu concordasse com a conclusão do texto, detectei várias informações falsas nele. Contactei o pastor que tinha escrito o texto mencionando isso e o autor disse-me que publicaria as correções no próximo exemplar do jornal. Esperei meses, li vários textos do mesmo pastor após o ocorrido sendo publicados no mesmo jornal sem que nada fosse comentado. Isso demonstra, a meu ver, um completo desinteresse pela verdade e um estado de inanição quando o assunto é ter fome de justiça.

   A regra, mesmo entre os cristãos que deveriam, naturalmente, apresentar uma fome insaciável pela justiça, tem sido a de ignorar tudo aquilo que não lhe diz respeito diretamente. Digo as coisas desta forma porque absolutamente tudo aquilo que fosse injusto deveria dizer-nos respeito de modo direto.

   Outra exemplificação do que digo são os recentes protestos contra a Rachel Sheherazade por conta de uma fala sua sobre um adolescente encontrado preso a um poste. Tão logo ela fez o seu proferimento, houve toda uma mobilização contra ela, dizendo-se que ela fez apologia ao crime. Pergunto-me onde estavam essas mesmas pessoas quado diversos outros jornalistas ou políticos do partido amigo fizeram apologia explícita ao crime. Onde estavam esses arautos da justiça quando, em 2011, policiais militares foram presos a um tronco de árvore e foram torturados até a morte? A resposta, para mim, parece ser mais do que óbvia. Em tempos de relativismo, injustiça é apenas aquilo que prejudicará você de alguma forma ou causará prejuízo ao seu partido, à sua família ou aos seus asseclas proselitistas.

   Em ética, costuma-se falar sobre atos "supra-rogatórios". Tais atos seriam aqueles que não seriam obrigatórios eticamente, mas seriam atos de heroísmo ou de genuína santidade. Não creio nestes atos: para mim, a vida ética de um cristão é uma vida de excelência e não de mediocridade. Estamos muito acostumados a levar uma vida baseando-nos no mínimo que temos de fazer para conquistar as coisas. Prestamos provas pensando no mínimo que temos de tirar para passar e não em gabaritá-las. Passamos a vida fazendo tudo de maneira desleixada. Eu mesmo despendi esforços em grande parte da minha vida, e continuo fazendo isso muitas vezes, pensando sempre no mínimo que tenho de fazer e não em dar o meu melhor em tudo o que eu tenho ou — melhor — em tudo o que devo fazer.

   O senso de dever é algo praticamente inexistente nos dias de hoje. O conforto, o comodismo, a segurança são metas incontornáveis de modo que o esforço de colocar-se no lugar no outro torna-se algo completamente inconcebível e até impraticável por vezes. Quando falo sobre "empatia desinteressada", na verdade, a expressão tem de ser tomada com caridade: afinal, toda empatia, todo se colocar no lugar do outro pressupõe um interesse porque isso nunca ocorre de maneira completamente natural sem que se resolva tomar a decisão de colocar-se no lugar do outro como o outro é e não como sou. É precisamente por pensar sobre como seria possível que nos déssemos ao trabalho de empreender tal esforço que creio no papel da Graça e é precisamente por isso que acredito, sinceramente, que não pode haver vida genuinamente ética à parte de Deus. A conhecida "Regra de Ouro" da ética — não fazer aos outros aquilo que você não gostaria que fizessem a você, como vemos em Mateus 7.12: "Tudo o que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles. Esta é a lei e os profetas." — tem sempre de envolver a empatia: do contrário, um masoquista, fazendo uso dessa regra, causaria sofrimento físico a quem não compartilhasse do seu masoquismo; por isso, eu disse, anteriormente, "como o outro é e não como sou".

   É importante destacar algo que creio que vários detratores da Rachel Sheherazade não entenderam: compreender é muito diferente de justificar. Embora a ética seja um pressuposto para a compreensão, esta não implica justificação moral. Em outros termos, colocar-se no lugar do outro e compreendê-lo nunca significa eximi-lo moralmente das suas obrigações. Quem criticou a Rachel acreditou que compreender a ação de quem prendeu aquele adolescente implicava justificar toda a situação concreta, embora a Rachel tenha apenas se servido de um caso concreto para falar de questões como a legítima defesa, assim como confunde que compreender a situação de alguém em condições econômicas e sociais precárias seja justificar qualquer ação que seja promovida com base nessas circunstâncias. Essa confusão mostra-se corrente quando alguém quer eximir-se das suas responsabilidades por meio da expressão "ponha-se no meu lugar!".

   A minha oração é a de que eu consiga ter fome e sede de justiça porque a injustiça está sendo praticada e não apenas porque estou sendo prejudicado de alguma maneira. Espero colocar-me do lado da justiça mesmo quando agir assim seja completamente desfavorável a mim mesmo. Quando houver a tentação de conferir empatia com interesses escusos, monopolizando-a apenas a quem eu acredite que mereça ser alvo da minha empatia, caridade e compaixão, que eu lembre a Parábola do Bom Samaritano em Lucas 10.25-37 na qual, ao ser perguntado sobre quem era o nosso próximo, Cristo mostra que é o nosso próximo todo aquele que possa ser alvo da nossa misericórdia.