domingo, 1 de setembro de 2013

A arte de ser mal entendido e a inescrutabilidade das comunicações humanas

   Desde a mais tenra idade, padeço do mal, que julgo ser universal, de ser mal interpretado. Quando estava no Jardim II, com cinco anos de idade, brincava com uma colega minha. No recreio, ela comia uma peta quando resolveu mexer comigo colocando uma que comia nos meus olhos, como se fossem óculos. Querendo revidar, peguei uma peta e corri atrás dela para fazer a mesma coisa. Minha colega subiu em uma cadeira. Quando fui subir também, desastrosamente, dei uma joelhada no estômago dela. Ela desmaiou. Em questão de segundos, apareceram pessoas desesperadas. Retiraram-na dali e eu fui parar da diretoria. Ninguém permitiu que eu desse a minha explicação do que ocorrera. Anos mais tarde, já adolescente, meus pais estavam comentando a minha atitude infantil absurda de agredir uma menina gratuitamente quando meu pai perguntou-me o que tinha acontecido para eu ter feito aquilo. Dei a explicação que dei aqui e completamente surpreso o meu pai questionou-me sobre por que não tinha dito aquilo para todo mundo antes. A minha resposta foi a de que nunca me tinham deixado dar explicações.

   Na mesma época, estava brincando com uma outra colega na classe de crianças da minha igreja. Brincávamos de empurrar-nos um ao outro. Em um dado momento, um colega nosso que não estava acompanhando a brincadeira virou-se e viu-me empurrando a menina. Em tom solene, ele disse-me: "não se bate em uma mulher nem com uma rosa". A nossa professora da época acompanhou a cena de modo semelhante ao nosso colega e guardou aquele momento. Anos mais tarde, a professora de outrora, hoje uma senhora de idade avançada, fazia questão de comentar com todas as pessoas que o seu aluno mal educado que agredia as colegas recebeu uma advertência de seu colega. Já desisti de tentar explicar à senhora que ela não sabe o que realmente aconteceu.

   Quando estava na primeira série do Ensino Fundamental, ganhei um dicionário. Adorava descobrir novas palavras nele e o meu hábito predileto na época era encontrar xingamentos polidos que ninguém conhecia. Em qualquer discussão, logo chamava os meus colegas de "pávidos", "energúmenos", "mentecaptos" e afins. Como eles não entendiam absolutamente nada do que eu falava, davam de ombros como se nada tivesse acontecido. Quando eu estava na terceira série, minha irmã mais nova ingressou no primeiro ano e ganhou, também, o seu dicionário. No ano seguinte, quando estava na quarta série, com 10 anos de idade, minha irmã veio pedir o meu dicionário emprestado. Diante da minha recusa, ela foi reclamar com os meus pais. Eles chegaram furiosos chamando-me de egoísta e não sei mais o quê. Diante de tantos impropérios, disse a eles que a minha irmã tinha ganhado o mesmo dicionário que o meu, com a diferença de que eu já usava o meu há muito mais tempo. Encontrei o dicionário destruído da minha irmã e mostrei o meu, novo em folha obviamente, e disse que seria injusto que eu fosse obrigado a emprestar o meu dicionário e que ele teria o mesmo destino tenebroso do exemplar da minha irmã. Constrangidos e ruborizados, meus pais pediram-me desculpas e disseram que eu tinha razão. Recentemente, meu pai perguntou se eu lembrava-me desse episódio e ele relatou-me que aprendeu com ele a sempre buscar ouvir todos os lados antes de tecer juízos. 

   Em 2008, em uma conversa com algumas pessoas, falávamos sobre inteligência. Na época, ainda acompanhava as edições da excelente revista "Mente & Cérebro". De posse dos dados que tinha lido há pouco tempo, disse aos colegas presentes que havia estudos estatísticos que mostravam que as pessoas que cursavam Exatas tinham, em média, um Q.I. maior que aquele das pessoas que cursavam Humanas. Para o meu azar, eu era a única pessoa do grupo que cursava Exatas — cursava Física naquele tempo. Imediatamente, ouvi protestos e disseram-me que se recusavam a acreditar que alguém, simplesmente porque tinha escolhido um curso na faculdade em detrimento de outro, era menos inteligente que outra pessoa que tomou outra decisão. Comecei a perceber naquela época o que o professor Olavo de Carvalho costuma dizer sobre os debates. No Brasil, freqüentemente, restam duas alternativas: ou você tem de infundir inteligência na cabeça do sujeito, o que é impossível, ou tem de ensinar todos os rudimentos básicos acerca de tudo para a pessoa; assim, o debate torna-se um esforço pedagógico e não uma discussão. Digo isso porque um dado estatístico apresenta uma plausibilidade e não uma relação de nexo causal necessário; em outras palavras, se estudos mostram que, em média, pessoas que cursam Exatas têm mais inteligência que pessoas de Humanas, isso mostra que, naquele círculo de pessoas no qual eu era o único representante das Exatas, seria mais provável que eu tivesse um Q.I. maior, mas seria absolutamente possível que eu tivesse o menor Q.I. do grupo. Não obstante as explicações que eu tentei dar para eliminar os desentendimentos e insinuações de que eu queria dizer que todo mundo ali era burro, as pessoas interpretaram o que ouviram como quiseram. Anos mais tarde, em 2012, uma pessoa que estava naquele grupo chamou-me de orgulhoso e arrogante em uma discussão. Quando eu perguntei a razão daquelas adjetivações, uma vez que a pessoa não tinha nenhum tipo de convívio freqüente comigo, ela disse-me que em 2008 ela teve a prova do que dizia. Poderia comentar a absurdidade disso a partir de diversas frentes. Em primeiro lugar, como uma pessoa pode julgar outra a partir de uma frase proferida quatro anos antes? As pessoas não conseguem conceber que se possa mudar de idéia ou que se possa dizer proferimentos dos quais você possa arrepender-se depois? Por vezes, creio que o critério de julgamento das pessoas é o seu próprio modo de agir: como elas são incapazes de serem autocríticas, de reverem suas ações e corrigirem-se, elas não esperam isso das outras pessoas. Como dizia Josemaria Escrivá, "Quando não há retidão naquele que lê, torna-se difícil que descubra a retidão daquele que escreve". Perdi a conta de quantas vezes eu disse "você está certo e eu estou errado" e recebi olhos arregalados de surpresa em troca. As pessoas, definitivamente, não estão acostumadas à honestidade e à sinceridade. Vejam bem: em 2008, nem converso ao Cristianismo eu era! Como já mencionei, era estudante de Física ainda. Depois disso, mudei-me para o curso de Matemática e acabei formando-me em Filosofia! Como alguém pode julgar o caráter e a personalidade de outra pessoa por conta de um proferimento de quatro anos? O pior é que, ainda por cima, o tal proferimento foi entendido de maneira completamente equivocada: não chamei ninguém ali de burro, embora o desconhecimento deles de noções extremamente básicas de Estatística fosse evidente.

   Na época, não conhecia Xavier Zubiri. Hoje, acredito que a inteligência é a capacidade de apreender a realidade e que todos nascemos com essa habilidade. O que se diz sobre "inteligências múltiplas" é uma bobagem para mim, embora eu mesmo tivesse falado sobre o assunto naquela discussão de 2008. Meu holismo reflete-se nessa capacidade de apreender a realidade: esta não é meramente econômica, biológica, física, política ou matemática. Uma ciência qualquer empreende recortes da realidade a fim de empreender a sua investigação. O mundo, entretanto, apresenta-se em sua totalidade. Quando vemos um objeto caindo, percebemos aquele fenômeno em todas as suas dimensões e não apenas de uma perspectiva gravitacional por exemplo; portanto, apenas o desenvolvimento conjunto dos vários tipos de maneiras de raciocinar-se acerca do mundo pode ser tido como realmente inteligente — o trocadilho aqui a partir da concepção de Zubiri é proposital. É muito comum você encontrar pessoas que têm um raciocínio surpreendente em Matemática, mas que são completas bestas quadradas em todo o resto. Mesmo antes de conhecer a epistemologia e a metafísica de Zubiri, já cria, por influência de Descartes, nessa necessidade de desenvolver todas as habilidades possíveis; por isso, enquanto buscava resolver o problema da Hipótese de Riemann na adolescência, também, compunha canções, escrevia contos e lia livros de Literatura e Filosofia. 

   O mesmo Zubiri fala do processo de "substantividade", por meio do qual buscamos fixar essências que se movem e são dinâmicas. A fenomenologia existencialista de Heidegger e de Sartre já tratava dessa necessidade que temos de criar categorias a fim de coisificar pessoas a partir delas: afinal, o Dasein heideggeriano é aquele tem o projeto de ser sem nunca poder sê-lo e aprisioná-lo a um projeto específico é ignorar essa incapacidade e ambigüidade. Terminologia existencialista à parte, há alguns anos, descobri o que é conhecido por "Princípio da Caridade", que, embora não tenha sido criado por eles, foi desenvolvido por autores como Willard Quine e Donald Davidson. O princípio, grosso modo, afirma que diante de várias interpretações possíveis de um falante você deve optar aquele que melhor o favoreça. Desde a minha infância, a experiência que tenho tido é a de que as pessoas parecem usar a versão inversa desse princípio, que chamarei de "Princípio de Descaridade". Falei sobre como me tornei católico na minha última postagem. Praticamente toda — tinha escrito apenas "Toda" aqui, mas me lembrei de que as pessoas não sabem mais o que é uma hipérbole — a literatura protestante crítica ao Catolicismo que encontrei parece fazer uso deste último princípio. O livro do Carlos Collette, por exemplo, chamado "Inovações do Romanismo", começa falando sobre o problema do sacramento da Ordem, dizendo que a ordenação sacerdotal católica depende das intenções, de acordo com a definição católica, mas que é impossível saber se alguém possui uma intenção de fazer algo de fato ou não. O Collette não cogita em nenhum momento em perguntar-se o que a Igreja Católica quer dizer com "intenção". Ele, simplesmente, pega os textos e entende-os como quer. O mesmo processo acontece com praticamente todas as doutrinas católicas. A Igreja Católica fala em "infalibilidade papal" e as pessoas não querem saber se os Papas escrevem bulas papais, encíclicas papais, cartas papais, exortações apostólicas, constituições apostólicas, cartas apostólicas, "motus proprius", sermões etc. e que, dentre esses documentos, apenas as bulas abarcam ensinamentos "ex cathedra" que são previstos pela infalibilidade. Ainda assim, a coisa é mais complexa porque há um conjunto de critérios definidos que devem ser satisfeitos  —  é só ler os documentos do primeiro concílio Vaticano. Assim como há diferenças entre os documentos, há diferenças nos ensinamentos: a Igreja possui depósitos de fé, dogmas, doutrinas, disciplinas e devoções, como classifica David Currie. Nessa lista, apenas os dois primeiros são infalíveis. Qual crítico da infalibilidade papal que busca ter um entendimento disso? Praticamente nenhum. A maioria sai vociferando dizendo que é absurdo dizer que o Papa não peca e que os os documentos da Igreja são prova inequívoca de que a infalibilidade não pode ser verdadeira porque houve muitas contradições entre os Papas. A Igreja afirma que "não há salvação fora da Igreja" e as pessoas saem protestando sem ter a menor idéia do que os católicos querem dizer com isso. Ninguém quer saber que a Igreja diz que qualquer pessoa batizada é incorporada à Igreja por Cristo e que, portanto, um presbiteriano, um batista, um luterano ou anglicano que tenha sido batizado já é católico mesmo que não seja um católico nominal e esteja desligado da plena comunhão com a Igreja Católica. Os exemplos são intermináveis. A mídia costumeiramente faz o mesmo procedimento ao comentar os pronunciamentos dos Papas, sem procurar entender o que ele quer dizer de fato. 

   Confesso, para terminar, que estou cada vez mais desanimado com debates e com discussões. No ambiente brasileiro, pesa o fato de que as pessoas não costumam ter o preparo adequado para ler e entender um texto. Constantemente, você não precisa apenas explicar o que disse, mas explicar ao outro o que ele mesmo falou e o que se pode depreender da sua fala. Quando o debate dá-se no âmbito da oralidade, a falta de preparo é patente. O que há de mais básico e elementar em Teoria da Argumentação é ignorado, de modo que recursos claramente falaciosos — digo "claramente" porque sabemos hoje do caráter contextual das falácias — são trazidos à tona e seus argumentos são completamente ignorados porque as pessoas perderam a sensibilidade de percepção de quando a sua fala é neutralizada por um argumento. A despeito da incompetência técnica, parece-me que impera uma malícia generalizada, uma má-fé entranhada na alma. As pessoas não estão interessadas no conhecimento. Elas não debatem porque querem conhecer o que é correto, mas porque querem mostrar que o outro está errado e  —  mais importante  —  que elas mesmas estão absolutamente certas. Alguém pode perguntar-me: "Ora, se você acredita mesmo que as comunicações humanas são inescrutáveis, por que continua escrevendo?". As razões são várias e deixá-las-ei para uma postagem futura; talvez, intitulada "Por que continuo a escrever (a despeito da descaridade reinante) ?". Como dica de uma das minhas linhas argumentativas, deixo uma citação de Nietzsche: "Há homens que já nascem póstumos".