O Livro de Kells (Irlanda, c. 800 d.C.), Folio 29IV, Retrato de São João [domínio público/ Wikimedia Commons]
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(1996, do meu livro "Uma defesa bíblica do Catolicismo")
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A fim de que os protestantes possam valer-se do princípio do "Sola Scriptura", eles têm de, primeiramente, aceitar a premissa que o antecede referente a quais livros fazem parte da Escritura — particularmente, quais livros compõem o Novo Testamento. Isso não é tão simples como pode parecer, a princípio, acostumados como estamos a aceitar, sem qualquer questionamento, o Novo Testamento como o temos hoje.
Embora, de fato, houvesse, grosso modo, um amplo consenso, na Igreja primitiva, sobre quais livros eram escriturísticos, ainda existia divergência de opinião suficiente para que razoavelmente lancemos dúvidas sobre os conceitos protestantes concernentes à possibilidade de a Bíblia autenticar-se por si mesma e de haver o máximo de perspicuidade ou de clareza em termos da sua interpretação por ela mesma.
O panorama que se segue da história da aceitação dos livros bíblicos (e também daqueles não bíblicos, que não foram aceitos como Escritura) ajudará o leitor a evitar uma generalização excessiva ou uma simplificação exagerada do complicado processo histórico por meio do qual obtivemos a nossa Bíblia atual.
Um diagrama visual da história do cânone do Novo Testamento
Explicação dos símbolos:
Livro aceito (ou citado): (*)
Livro contestado pessoalmente ou mencionado como contestado: (?)
Livro rejeitado, desconhecido ou não citado: (X)
Período neotestamentário (c. 35-90 d.C.)
Neste período, há pouco sentido formal de um cânone da Escritura.
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Padres Apostólicos (90-160 d.C.)
Resumo: o Novo Testamento ainda não é claramente distinguido qualitativamente de outros escritos cristãos.
Os Evangelhos foram, em geral, aceitos por volta do ano 130;
Os "Evangelhos" de Justino Mártir contêm material apócrifo;
Policarpo usa, pela primeira vez, todos os quatro "Evangelhos", agora, como Escritura;
O livro de "Atos" é pouco conhecido ou citado;
O "corpus" paulino, em geral, é aceito por volta do ano 130, ainda que as citações dele sejam raramente tidas como escriturísticas;
Justino Mártir: "Filipenses" e "1 Timóteo" (X);
Justino Mártir e Policarpo: "2 Timóteo"; "Tito", "Filemon" (X);
O livro de "Hebreus" não era considerado canônico;
Clemente de Roma (?)
Justino Mártir e Policarpo (X)
O livro de "Tiago" não era considerado canônico e nem mesmo tinha sido sequer citado
Justino Mártir e Policarpo (X)
"1 Pedro" não era considerado canônico;
"2 Pedro" não era considerado canônico, nem era citado;
"1 João", "2 João" e "3 João" não eram considerados canônicos;
Justino Mártir (X)
Policarpo: "1 João" (?); "3 João" (X);
"Judas" não era considerado canônico;
Justino Mártir e Policarpo (X)
O "Apocalipse de São João" não era canônico;
Policarpo (X)
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De Irineu a Orígenes (160-250 d.C.)
Resumo: a consciência de que há um cânon inicia-se no final do século II.
Tertuliano e Clemente de Alexandria usam, pela primeira vez, a expressão "Novo Testamento";
Os Evangelhos são aceitos;
O livro de "Atos" começa a ser, gradualmente, aceito;
O "corpus" paulino é aceito com algumas exceções;
Clemente de Alexandria: "2 Timóteo" (X);
Irineu, Orígenes, Tertuliano e Clemente de Alexandria: Filemon (X)
O livro de "Hebreus" não foi tido como canônico, no Ocidente, até o século IV;
Orígenes (?);
Aceito, primeiramente, por Clemente de Alexandria (*)
O livro de "Tiago" não era canônico;
Mencionado, pela primeira vez, por Orígenes (?);
Irineu, Tertuliano e Clemente de Alexandria (X);
"1 Pedro" é aceito gradualmente;
Aceito, primeiramente, por Irineu e Clemente de Alexandria (*);
"2 Pedro" não era canônico;
Mencionado, primeiramente, por Orígenes (?);
Irineu, Tertuliano e Clemente de Alexandria (X);
"1 João" tem aceitação gradual;
Aceito, primeiramente, por Irineu (*);
Orígenes (X);
"2 João" não é canônico;
Orígenes (?);
Tertuliano e Clemente de Alexandria (X);
"3 João" não é canônico;
Orígenes (X);
Irineu, Tertuliano e Clemente de Alexandria (X);
"Judas" tem aceitação gradual;
Clemente de Alexandria (X);
Orígenes (X);
O "Apocalipse de São João" tem aceitação gradual;
Aceito, primeiramente, por Clemente de Alexandria (*);
Cânon de Barococcio, c. 206 (X);
"Epístola de Barnabé";
Clemente de Alexandria e Orígenes (*);
"O Pastor de Hermas"
Irineu, Tertuliano, Orígenes e Clemente de Alexandria (*);
"Didaquê":
Clemente de Alexandria e Orígenes (*);
"Apocalipse de Pedro"
Clemente de Alexandria (*)
"Atos de Paulo"
Orígenes (*);
Aparece em traduções para o grego, o latim (5), o siríaco, o armênio e o árabe.
"Evangelho de Hebreus"
Clemente de Alexandria (*)
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Cânone de Muratoriano (c. 190 d.C.)
Exclui os livros de "Hebreus", "Tiago", "1 Pedro" e "2 Pedro";
Inclui o "Apocalipse de Pedro" e "Sabedoria de Salomão"
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De Orígenes à Nicéia (250-325 d.C.)
Resumo: as epístolas católicas e o "Apocalipse" ainda estão sob disputa.
Os Evangelhos, "Atos" e o "corpus" paulino são aceitos;
O livro de "Hebreus" é aceito no Oriente
Ainda sob disputa no Ocidente (X, ?)
O livro de "Tiago" ainda está sob disputa no Oriente (X, ?)
Não é aceito no Ocidente (X)
"1 Pedro" é bastante aceito;
"2 Pedro" ainda está sob disputa;
"1 João" é bastante aceito;
"2 João", "3 João" e "Judas" ainda estão sob disputa;
O "Apocalipse de São João" ainda está sob disputa, especialmente no Oriente;
Dionísio (X)
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Concílio de Nicéia (325)
Questionamento da canonicidade de "Tiago", "2 Pedro"; "2 João"; "3 João" e "Judas";
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De 325 ao Concílio de Cartago (397)
Resumo: Atanásio é o primeiro a listar os 27 livros do Novo Testamento atuais como tais em 367. Ainda existem discordâncias sobre vários livros, quase até 397, quando o cânone é fechado autoritativamente.
Os Evangelhos, "Atos", o "corpus" paulino, "1 Pedro" e "1 João" são aceitos;
O livro de "Hebreus", finalmente, é aceito no Ocidente;
"Tiago" é aceito lentamente;
Não é sequer citado, no Ocidente, até por volta do ano 350!
"2 Pedro" é finalmente aceito;
"2 João"; "3 João" e "Judas" são finalmente aceitos;
O "Apocalipse de São João" é finalmente aceito
Cirilo de Jerusalém, João Crisóstomo e Gregório de Nazianzo (X);
"Epístola de Barnabé"
"Codex Sinaiticus" — até o fim do século IV (*);
"O Pastor de Hermas"
"Codex Sinaiticus" — até o fim do século IV (*);
Usado como livro-texto para catecúmenos, de acordo com Atanásio
"1 Clemente"; "2 Clemente"
"Codex Alexandrinus" — até o início do século V! (*)
Os protestantes, obviamente, aceitam o cânone tradicional do Novo Testamento (embora um tanto inconsistentemente e com alguma relutância parcial — Lutero questionou a completa canonicidade de "Tiago", do "Apocalipse de São João" e de outros livros). Ao fazê-lo, eles, necessariamente, reconheceram a autoridade da Igreja Católica. Do contrário, provavelmente, o Protestantismo teria tido o mesmo destino de todas as heresias antigas do primeiro milênio da Era da Igreja — degenerando-se em cultos insignificantes e bizarros e desaparecendo nos remansos pútridos da história.
Fontes para o diagrama do cânone do Novo Testamento (todas protestantes):
1) J. D. Douglas, editor, New Bible Dictionary, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1962 edition, 194-198.
2) F. L. Cross and E. A. Livingstone, editors, The Oxford Dictionary of the Christian Church, Oxford: Oxford Univ. Press, 2nd edition, 1983, 232, 300, 309-10, 626, 641, 724, 1049, 1069.
3) Norman L. Geisler & William E. Nix, From God to Us: How We Got Our Bible, Chicago: Moody Press, 1974, 109-12, 117-125.
[Tradução: Fábio Salgado de Carvalho; original: http://www.patheos.com/blogs/davearmstrong/2017/05/new-testament-canon-historical-processes.html]
Trabalho útil e esclarecedor. Obrigado Fábio.
ResponderExcluirObrigado pelo comentário, professor. É uma honra tê-lo como leitor.
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