segunda-feira, 25 de abril de 2022

"Unigenitus" (1713) vs. estudo pessoal da Bíblia? (Dave Armstrong)

 + Outras supostas proclamações católicas "antibíblicas" e analogias ao "dogmatismo" calvinista no Sínodo de Dort


Um blogue protestante anticatólico chamado "Evangelical Miscellanies" produziu um longo artigo intitulado "A Bíblia foi proibida pela Igreja Romana?" (5-10-2021). 
No presente texto, lidarei com a porção (em azul abaixo) que tem a ver com a "Unigenitus": a Constituição Apostólica de 1713 emitida pelo Papa Clemente XI. Vejam também minhas réplicas anteriores a esse artigo:





Papa Clemente XI (1713 d.C.):

"Unigenitus", 8 de setembro de 1713, "Erros jansenistas de Pasquier Quesnel":

79. É útil e necessário em todo tempo, em todo lugar e a toda espécie de pessoa, estudar e conhecer o espírito, a piedade e os mistérios da Sagrada Escritura. – 1Cor 14,5.

80. A leitura da Sagrada Escritura é para todos. – At 8,28.

81. A santa obscuridade da palavra de Deus não é para os leigos um motivo para dispensar-se de sua leitura. – At 8,31.

82. O dia do Senhor deve ser santificado pelos cristãos com leituras piedosas, sobretudo das sagradas Escrituras. É condenável querer tirar o cristão desta leitura. – At 15,21.

83. É um engano persuadir-se que o conhecimento dos mistérios da religião não deva ser comunicado às mulheres mediante a leitura dos livros sagrados. Não da simplicidade das mulheres, mas da soberba ciência dos varões surgiu o abuso das Escrituras e nasceram as heresias. – Jo 4,26.

84. Afastar das mãos dos cristãos o Novo Testamento, ou então conservá-lo fechado, privando-os do modo de compreendê-lo, é fechar para eles a boca de Cristo. – Mt 5,2.

85. Proibir aos cristãos a leitura da Sagrada Escritura, de modo particular do Evangelho, é proibir o uso da luz aos filhos da luz e fazer como se sofressem uma espécie de excomunhão. – Lc 11,33

[Censura:] [...] Nós declaramos, condenamos e rejeitamos … as proposições antes insertas, respectivamente como falsas, fraudulentas, malsoantes, ofensivas aos ouvidos piedosos, escandalosas, perniciosas, temerárias, ofensivas para a Igreja e para a sua atuação, ultrajosas não só para a Igreja mas também para com os poderes seculares, sediciosas, ímpias, blasfemas, suspeitas de heresia e com sabor
de heresia, e ainda aptas a favorecer os hereges, as heresias e também o cisma; errôneas, próximas à
heresia, repetidamente condenadas e, finalmente, heréticas, renovando de modo manifesto as diversas
heresias e especialmente aquelas que estão contidas nas famosas proposições de Jansênio, entendidas no sentido mesmo em que foram condenadas [...]

Inocêncio XIII (1721-1724); Bento XIII (1724-1730); Clemente XII (1730-1740)

(DENZINGER, Heinrich. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Loyola, 2007. p. 532)

O apologista católico Jimmy Akin fez uma análise maravilhosa dessa Bula, no que diz respeito à Biblia, em 2012:
A coisa importante a ser compreendida aqui é que a "Unigenitus" enquadra-se em um gênero de documentos papais que lista e condena várias proposições propostas por um autor ou autores particulares. Esse tipo de documento lista um monte de proposições, tipicamente extraídas da obra de um único autor, depois emite uma condenação de um tipo ou de outro como uma advertência ao fiel [...]

No entanto, nem todas as proposições são problemáticas do mesmo modo; então, você tem de observar as condenações específicas que lhes são aplicadas. 

Cada proposição condenada na "Unigenitus" é abarcada por ao menos uma dessas censuras. Pode ser abarcada por mais de uma, mas é-o por ao menos uma. Algumas são falsas. Algumas são sediciosas. Algumas são malsoantes. Algumas são ofensivas a ouvidos piedosos. Algumas podem ser falsas e sediciosas. Etc.

Contudo, exceto por proposições condenadas anteriormente sobre o Jansenismo, o documento não intenta dizer quais censuras são aplicadas a quais preposições [...]

As [...] censuras nem mesmo significam que a proposição seja falsa. Elas meramente significam que a proposição é ao menos suspeita (soa mal), ao menos foi mal formulada (ofensiva a ouvidos piedosos), ou ao menos não foi aprovada e é potencialmente perigosa (imprudente).

Sem analisarmos cada censura individualmente em detalhes, é claro que muitas delas são bastante limitadas em seu significado e que não implicam que uma proposição seja totalmente falsa – apenas que há algo problemático com ela. Pode até expressar uma verdade parcial, mas fazê-lo de modo mal formulado ou digno de uma advertência aos fiéis [...]
79. É útil e necessário em todo tempo, em todo lugar e a toda espécie de pessoa, estudar e conhecer o espírito, a piedade e os mistérios da Sagrada Escritura. – 1Cor 14,5.
A palavra mais problemática que Quesnel põe nessa proposição é "necessário". Realmente é necesários, em todo tempo, em todo lugar, que cada pessoa estude os mistérios da Sagrada Escritura? [...]

Problemas similares replicam-se se nos focarmos na palavra "útil". Realmente é útil em todo tempo, em todo lugar, para todo tipo de pessoa? E aqueles que não estão preparados para isso?

Parece-me, desse modo, que provavelmente a preocupação com essa proposição é – como o leitor pode ver – a de que "estamos preocupados com pessoas lendo as Escrituras e chegando a conclusões equivocadas sem uma preparação apropriada".

Não parece ser "rejeitamos a idéia do estudo individual da Escritura, uma vez que não é clara". Se uma pessoa tem uma preparação adequada (tem uma base apropriada na fé da Igreja, não inferirá conclusões heréticas da sua leitura, está bem informada dos métodos de interpretação da Escritura etc.); então, o que haveria de errado em estudar a Escritura por conta própria? Certamente, a rejeição da proposição como problemática de alguma maneira não implica tal conclusão – uma conclusão que a Igreja nunca sustentou.
80. A leitura da Sagrada Escritura é para todos. – At 8,28.
Isso parece ser censurável pelas mesmas bases da proposição anterior. Novamente: o que dizer daqueles que não estão preparados para um estudo individual da Escritura?
81. A santa obscuridade da palavra de Deus não é para os leigos um motivo para dispensar-se de sua leitura. – At 8,31.
A rejeição dessa afirmação parece ter por intenção proteger os fiéis de terem de arcar com o ônus de estudar as Escrituras por conta própria a despeito da falta de clareza que Deus desejou que tivessem. Em outras palavras, não há problemas em uma pessoa dizer: "Pela Providência Divina, as Escrituras não são tão claras quanto eu precisaria que fossem para estudá-las por conta própria. Estou na posição do eunuco etíope, que não consegue discernir pontos importantes das Escrituras, por conta própria, sem guiamento. O fato de que as Escrituras contenham esse nível de mistério é uma razão para que não as estude sem orientação".
82. O dia do Senhor deve ser santificado pelos cristãos com leituras piedosas, sobretudo das sagradas Escrituras. É condenável querer tirar o cristão desta leitura. – At 15,21.
A rejeição dessa afirmação parece ter a mesma motivação da anterior. Parece pretender proteger os cristãos da idéia de que seria "prejudicial" se sentissem a necessidade de dizer: "Não estou preparado para estudar as Escrituras sem orientação aos domingos; portanto, desejo desistir de fazê-lo. Ficarei ouvindo as leituras na Igreja e as explicações que me são fornecidas pelos pastores da Igreja e por outras pessoas qualificadas a fazê-lo".
83. É um engano persuadir-se que o conhecimento dos mistérios da religião não deva ser comunicado às mulheres mediante a leitura dos livros sagrados. Não da simplicidade das mulheres, mas da soberba ciência dos varões surgiu o abuso das Escrituras e nasceram as heresias. – Jo 4,26.
Parece haver a preocupação de proteger os direitos de as mulheres oferecerem as mesmas objeções discutidas quanto às duas proposições anteriores. 
84. Afastar das mãos dos cristãos o Novo Testamento, ou então conservá-lo fechado, privando-os do modo de compreendê-lo, é fechar para eles a boca de Cristo. – Mt 5,2.
Anteriormente, fizemos referência à censura de algumas proposições como "sediciosas". Esse termo dignifica, grosso modo, faltante com a caridade. Em outras palavras, injusto com aqueles que você critica por meio de uma atitude rancorosa e culposa. Em outras palavras, ser hipercrítico e hostil.

Eu poderia, facilmente, ver essa proposição como sendo sediciosa.

Ela caracteriza a Igreja como se ela estivesse tirando o Novo Testamento das mãos dos cristãos.
85. Proibir aos cristãos a leitura da Sagrada Escritura, de modo particular do Evangelho, é proibir o uso da luz aos filhos da luz e fazer como se sofressem uma espécie de excomunhão. – Lc 11,33
Essa também me parece ser sediciosa [...]

A formulação geral é hostil, contenciosa e parece, novamente, sugerir que a Igreja não endossa o estudo universal das Escrituras e sem guiamento sob a pior perspectiva possível. 

No entanto, há boas razões para não endossar o estudo universal e sem orientação das Escrituras. Algumas pessoas simplesmente não estão preparadas para isso. 

Posso, desse modo, ver como essa proposição seria classificada como sediciosa, malsoante, ofensiva a ouvidos piedosos e outras coisas similares [...]

Parece-me também que elas [as proposições acima] não se somam a uma rejeição do estudo individual da Escritura àqueles que estejam apropriadamente preparados para isso. Elas meramente rejeitam a idéia de que o estudo da Escritura sem orientação poderia ser universalmente adotado por todos os cristãos, a despeito do seu nível de preparo, e de que os cristãos teriam alguma culpa se não se sentissem preparados para realizar essa tarefa e contentassem-se em aprender as Escrituras sob orientação eclesiástica. 
Todo o seu artigo é uma mina de ouro de informação e é leitura obrigatória a qualquer um que busca uma compreensão católica ortodoxa desse documento papal.

O artigo "A Bíblia foi proibida pela Igreja Romana?" passa a listar outros decretos supostamente "antibíblicos" da Igreja Católica. Os mesmos erros com os quais já lidei neste e nos meus três artigos anteriores continuam sendo o falso princípio orientador da interpretação desses documentos. O principal deles é a incapacidade contínua (ou falta de vontade) em distinguir entre a Bíblia e traduções da Bíblia sem autorização, assim como a negligência do elemento necessário da interpretação autoritativa em conformidade com os ensinamentos da Igreja desde o início.

Como resultado (entre outras coisas) de uma interpretação bíblica totalmente sem orientação e de uma mentalidade de "Somente a Escritura" (à parte da ortodoxia doutrinal recebida), muitas denominações heréticas surgiram nos séculos XIX e XX, ensinando muitas doutrinas grosseiras (incluindo, especialmente, a negação da Santíssima Trindade e da deidade/divindade de Cristo), contra as quais nossos irmãos protestantes unem-se a nós na sua vigorosa condenação:
Testemunhas de Jeová: 1870

Mormonismo: 1820

Ciência cristã: 1875

The Way International: 1942

Cristadelfianos: 1848
Portanto, outros decretos católicos listados no artigo tomam nota desses fatores perigosos repetidamente (e estou citando apenas o que o próprio artigo crítico providenciou-nos):

Ubi Primum: a encíclica do Papa Leão XII (1824) criticou as sociedades bíblicas que se caracterizam por "rejeitar as tradições dos Santo Padres" e versões da Bíblia que são "mal traduzidas": levando a "interpretações distorcidas do Evangelho de Cristo" e a um "evangelho de homens", ou mesmo "do Diabo". O documento não se opunha totalmente às traduções vernaculares. Em vez disso, o que se condenava era que tais traduções fossem feitas "por atacado e sem distinção" e que, "por causa da temeridade humana, causariam mais mal do que bem".

Traditi Humilitati: a encíclica do Papa Pio VIII (1829) advertiu não sobre todas as Bíblias e sobre toda leitura da Bíblia, mas especificamente sobre "aqueles que publicam a Bíblia com novas interpretações contrárias às leis da Igreja", que "habilmente distorcem o significado por meio da sua própria interpretação". Citando Trento, ela recomenda que "traduções da Bíblia ao vernáculo" não fossem "permitidas sem a aprovação da Sé Apostólica" e exigia ainda que fossem "publicadas com comentários dos Padres".

Isso permitiu que a ortodoxia recebida fosse o fator orientador da interpretação bíblica apropriada. Provérbios 22.28 expressou a mesma noção: "Não removas os marcos antigos que teus antepassados fixaram" (CNBB) [1]. O Papa Pio VIII estava justamente preocupado com a sorte de homem que "pode torcer as Sagradas Escrituras para sua própria opinião ou para sustentar uma opinião contrária à Igreja ou aos Papa" e que iria "pôr em perigo os ensinamentos sagrados".

De forma semelhante, a "Inter Praecipuas", a encíclica do Papa Gregório XVI (1844) foi crítica quanto às "sociedades bíblicas" na medida em que convidava "todos a ler" a Sagrada Escritura "sem orientação". Ele cita São Jerônimo, que reclamou que isso tornava a interpretação da Bíblia "comum a velhas balbuciantes e velhos loucos e sofistas verborrágicos". Como esperado, o documento condena aqueles que "ousariam explicar e interpretar os escritos divinos contrariamente à tradição dos Padres e à interpretação da Igreja Católica".

É claro que os calvinistas fizeram (e fazem) exatamente a mesma coisa. Eles nunca permitiriam um ensino público (supostamente ou realmente apoiado na Bíblia) que fosse contrário às suas cinco doutrinas distintivas da "TULIP" (depravação total/ eleição incondicional/ expiação limitada/ graça irresistível/ perseverança dos santos). Os calvinistas até tinham os seus próprios concílios e uma espécie de "excomunhão": o principal deles foi o Sínodo de Dort em 1618-1619. Os seu cânones quase em nada diferem (em seu "dogmatismo") dos decretos tridentinos papais, condenando dezenas de crenças de colegas protestantes (arminianos) que diferem do calvinismo em suas inovações e tradições humanas (ambos os lados, é claro, apelando para as Escrituras com respeito a todas as suas crenças). Desses cânones, conclui-se:
"Esta é a declaração clara, simples, e sincera da doutrina ortodoxa com respeito aos Cinco Artigos de Fé disputados na Holanda; e esta é a rejeição dos erros pelos quais as Igrejas têm sido perturbadas, por algum tempo. O Sínodo de Dort julga a presente declaração e as rejeições serem tiradas da Palavra de Deus e conforme as Confissões das Igrejas Reformadas. Assim torna-se evidente que alguns agiram muito impropriamente e contrário à toda verdade, equidade e amor, desejando persuadir o povo do seguinte:

- A doutrina das Igrejas Reformadas com relação à predestinação e assuntos relacionados com ela, por seu caráter e tendência, desvia os corações dos homens da verdadeira religião.

- Ela é um ópio do diabo para a carne, bem como uma fortaleza para Satanás, onde permanece à espera por todos, fere multidões atingindo mortalmente a muitos com os dardos tanto de desespero quanto de falsa segurança.

- Faz de Deus o autor injusto do pecado, um tirano e hipócrita; é nada mais do que um renovado Estoicismo, Maniqueísmo, Libertinismo e Islamismo.

- Conduz a um pecaminoso descuido porque faz as pessoas crer que nada pode impedir a salvação dos eleitos, não importando como vivam, e que portanto podem, tranqüilamente, cometer os crimes mais horríveis. Por outro lado, se os reprovados tivessem produzido todas as obras dos santos, isto não poderia nem ao menos contribuir para a salvação deles.

- A mesma doutrina ensina que Deus tem predestinado e criado a maior parte da humanidade para a condenação eterna só por um ato arbitrário de sua vontade sem levar em conta qualquer pecado.

- Da mesma maneira pela qual a eleição é a fonte e a causa da fé e boas obras, a reprovação é a causa da incredulidade e impiedade.

- Muitos filhos inocentes de pais crentes são arrancados do seio de suas mães e, tiranicamente lançados no inferno, de tal modo que nem o sangue de Cristo, nem o batismo nem as orações da Igreja no ato do batismo lhes podem ser proveitosos.

Há muitas outras coisas semelhantes que as Igrejas Reformadas não apenas não confessam mas também repelem de todo coração.

Portanto, este Sínodo de Dort conclama em nome do Senhor a todos os que piedosamente invocam o nosso Salvador Jesus Cristo, que não julguem a fé das Igrejas Reformadas a partir das calúnias juntadas daqui e dali, nem tão pouco a partir de declarações pessoais de alguns professores, modernos ou antigos, que muitas vezes são citadas em má fé, distorcidas e explicadas de forma oposta ao seu sentido real.

Mas deve-se julgar a fé das Igrejas Reformadas pelas Confissões públicas destas Igrejas, e pela presente declaração da ortodoxa doutrina, confirmada pelo consenso unânime de cada um dos membros de todo o Sínodo.

Além do mais, o Sínodo adverte os caluniosos para que considerem o severo julgamento de Deus à espera deles, por falar falso testemunho contra tantas igrejas e contra as Confissões delas, e por conturbar as consciências dos fracos e por tentar colocar em suspeito, aos olhos de muitos, a comunidade dos verdadeiros crentes." [2]
Agora, como isso, com muito menos pedigree histórico e apoio patrístico, difere do que a Igreja Católica tem feito? Eles declaram que a Bíblia ensina certas coisas e que todos os bons cristãos (i.e., calvinistas) devem obedecer a essa interpretação deles, determinada pelas confissões e credos "reformados" autoritativos e inquestionáveis.

Aqueles que não o fazem, em franca discordância, são condenados e considerados como estando fora do redil, sustentando falsas opiniões teológicas que são perigosas para as almas. É tudo a mesma coisa, mas os anticatólicos calvinistas condenam os católicos quando o fazem, mesmo quando fazem exatamente a mesma coisa a partir da sua própria perspectiva denominacional. Dois pesos e duas medidas"

O mesmo Sínodo de Dort também aprovou uma "tradução oficial da Bíblia holandesa (a "Statenvertaling", i.e. a Tradução dos Estados ou a Versão Holandesa Autorizada) das línguas originais que seria conclusa em 1637, que "continuaria sendo a tradução padrão nas igrejas protestantes por mais de três séculos" [Wikipedia, "Synod of Dort"]. Isso é bastante similar ao "status" da versão autorizada da King James (1611) no protestantismo inglês. Ela até utilizou o mesmo manuscrito do Novo Testamento (hoje ultrapassado) "Textus Receptus".

Novamente, em que medida isso diferiria dos católicos quanto à crença de que há uma tradução católica "autorizada" (por muitos anos, a Vulgata latina traduzida por São Jerônimo) e de que deveria haver advertências contra aquelas que divergissem dela? Não há divergência fundamental ou essencial aqui quanto aos princípios. Eles são exatamente os mesmos. Ambas as partes foram "pró-Bíblia", mas "anti-Bíblias não autorizadas".

A Igreja Católica (como os calvinistas) crê que existe algo como uma "ortodoxia" e que uma tradição sagrada cristã foi recebida e passada adiante pelos Apóstolos (e que isso é inseparável da exegese e interpretação bíblicas). A partir dessa crença, o Papa Leão XIII escreveu na "Providentissimus Deus" (1893):
"Deus entregou as Sagradas Escrituras à Igreja, e, ao ler e ao fazer uso da Sua Palavra, deve-se seguir a Igreja como guia e mestra. Santo Irineu há muito estabeleceu que onde estivesse o 'charismata' de Deus estaria a verdade a ser aprendida e que a Sagrada Escritura foi interpretada com segurança por aqueles que detiveram a Sucessão Apostólica. O seu ensinamento, e aquele de outros Pais da Igreja, é retomado pelo Concílio Vaticano, no qual, renovando-se o decreto de Trento, declara-se que o seu "espírito" é este: que, 'em matéria de fé e moral, pertencente ao edifício da fé cristã, deve ser respeitado o verdadeiro sentido da Sagrada Escritura que foi e é resguardado pela Santa Mãe, a Igreja, cuja posição é a de julgar o verdadeiro sentido e a interpretação das Escrituras; portanto, a ninguém é permitido interpretar a Sagrada Escritura contra tal sentido ou contra o consenso unânime dos Padres". Por meio desse sábio decreto, a Igreja, de modo algum, impede ou restringe a busca da ciência bíblica, mas protege-a do erro e, em larga medida, auxilia-a em seu real progresso. Um amplo campo ainda está em aberto para o estudante privado, no qual sua habilidade hermenêutica pode mostrar-se efetivamente e em benefício da Igreja.

Observando-se que o mesmo Deus é autor tanto dos Livros Sagrados como da doutrina confiada à Igreja, claramente é impossível que cada ensino possa, por meios legítimos, ser extraído dos primeiros com qualquer variação com respeito à última. Por conseguinte, segue-se que toda interpretação é tola e falsa se faz os escritores sagrados discordarem uns dos outros ou se se opõe à doutrina da Igreja. O professor da Sagrada Escritura, portanto, entre outras recomendações, deve estar bem informado de todo o âmbito da Teologia e ler profundamente os comentários dos Santos Padres e dos Doutores, e outros intérpretes de renome. Isso é posto por São Jerônimo, e ainda mais freqüentemente por Santo Agostinho, que se queixa com razão: "Se não há nenhum ramo de ensino, por mais humilde e fácil de aprender, que não requeira um mestre, que maior sinal de temeridade e de orgulho poderia haver do que a recusa em estudar os livros dos mistérios divinos com a ajuda daqueles que os interpretam? [...] Os Pais da Igreja, dizemos, são de suprema autoridade, sempre que todos eles interpretam de uma e da mesma maneira qualquer texto da Bíblia como pertencente à doutrina da fé ou da moral, pois sua unanimidade evidencia claramente que tal interpretação proveio dos Apóstolos como matéria de fé católica. A opinião dos Pais é também do mais alto peso quando tratam dessas matérias na sua capacidade de Doutores, de modo não oficial; não apenas porque sejam excelsos em seu conhecimento da doutrina revelada e no seu conhecimento de muitas coisas que são úteis na compreensão dos Livros apostólicos, mas porque são homens de eminente santidade e de zelo ardente pela verdade, a quem Deus concedeu a mais ampla medida da Sua luz. Portanto, o expositor tem o dever de seguir os seus passos com toda a reverência e gozar do seu labor com apreciação inteligente (seção 14).
Mas voltemos ao artigo calvinista em questão. Ao citar a "Inter Praecipuas" (Papa Gregório XVI, 1844), o autor teve o cuidado de citar apenas coisas que, à primeira vista, parecem dar suporte à sua agenda em mostrar que a Igreja Católica é supostamente contra a Bíblia em si mesma. Então, ele cita as seções 1, 4, 11 e 12 das 16 seções. É a metodologia anticatólica consagrada de citação seletiva, fora de contexto, com a intenção de deixar uma impressão particular enganosa nos leitores (predominantemente do tipo que estão ávidos e dispostos a engolir qualquer tipo de calúnia "vulgar" contra a Igreja Católica)

É verdade que não se pode citar tudo o tempo todo; no entanto, ainda assim é preciso precaver-se contra uma apresentação incompleta ou imprecisa. Eis por que os juramentos que as testemunhas fazem na corte incluem a disposição em dizer "toda a verdade". Aqui estão, por conseguinte, algumas das poções que foram deliberadamente omitidas no artigo que estou criticando:
2 – Mas não desconheceis, veneráveis irmãos, para o que apontam os esforços das mencionadas sociedades. Afinal, sabeis bem como nas Escrituras mesmas o primeiro dos apóstolos, louvando as cartas de s. Paulo, nos admoesta que nelas “existem algumas coisas difíceis de compreender, e os ignorantes e instáveis distorcem-nas, à semelhança de outras Escrituras, para sua própria condenação”; e logo acrescenta: “Vós, então, tendo sido advertidos, ficai atentos para não serdes enganados na vossa firmeza” (2 Pd 3,16-17). Vede, então, que desde o início do cristianismo essa foi a estratégia dos heréticos: repudiada a Palavra de Deus, tal como resulta da tradição, e recusada a autoridade da Igreja católica, passam a interpolar “com manipulações” as Sagradas Escrituras ou a alterar “o sentido na exposição” (2). Não ignorais, enfim, quanta diligência ou sabedoria é preciso para traduzir fielmente em outra língua as palavras do Senhor. De tal modo que, nada é mais fácil do que a multiplicação desses gravíssimos erros, quer nas versões preparadas pelas sociedades bíblicas, quer por fraude ou por ignorância de tantos intérpretes. Estes são longamente ocultados da mesma quantidade e variedade daquelas, para dano de muitos. Mas pouco importa às mencionadas sociedades quais erros assimilam os leitores de tais versões, contanto que pouco a pouco se acostumem a julgar audazmente do sentido da Escritura, a desprezar as tradições divinas custodiadas diligentemente pela Igreja católica segundo a doutrina dos Padres, e a repudiar o magistério da Igreja mesma.

3 – Por isso os associados bíblicos mencionados não cessam de caluniar a Igreja e a esta santa sé de Pedro, como se fosse aquela que, há muitos éculos, viesse se esforçando por impedir ao povo fiel o conhecimento da Sagrada Escritura. Ao contrário, em inúmeros e claríssimos documentos é comprovado o empenho com o qual, também em tempos mais recentes, os sumos pontífices e, sob sua guia, os outros prelados católicos procuram instruir os povos na palavra de Deus conservada na Escritura e na tradição. Principalmente o concílio de Trento não só recomendou aos bispos que anunciassem freqüentemente nas dioceses “as sagradas Escrituras e a lei de Deus” (3), mas, ampliando a instrução do concílio Lateranense [IV] (4), providenciou que em cada Igreja, ou catedral ou colegiada, das cidades e centros mais insignes não faltasse uma prebenda teologal, a ser confiada a pessoas asseguradamente idôneas na exposição e interpretação da Sagrada Escritura (5). Quanto ao estabelecer a prebenda teologal – em conformidade com aquele decreto tridentino, e das aulas, que o cônego teólogo deveria ministrar publicamente ao clero e também ao povo, tratou-se depois em muitos sínodos provinciais (6), e no concílio de 1725 (7), realizado em Roma, para o qual Bento XIII, nosso predecessor de feliz memória, além dos pastores da província romana, tinha convocado também muitos arcebispos, bispos e outros ordinários imediatamente sujeitos a esta Santa Sé (8). Além disso, o mesmo sumo pontífice estabeleceu, para igual fim, muitas coisas com cartas apostólicas, especificamente para a Itália e ilhas vizinhas (9). Enfim, veneráveis irmãos, as respostas dadas mais vezes pela nossa Congregação do Concílio a vós próprios e aos vossos predecessores, a respeito das relações que já estão acostumados a fazer de cada diocese à Sé Apostólica (10), devem ter-lhes demonstrado claramente como ela costuma congratular-se com os bispos se junto a eles os prebendados teólogos preenchem bem o ofício de ler publicamente as Sagradas Escrituras e como não deixa nunca de encorajar e ajudar nos seus cuidados pastorais, se nisso não obtiveram o sucesso esperado.
A seguir, nosso artigo cita a "Qui Pluribus" (1846), uma encíclica do Papa Pio IX. Ela condena não todas as versões vernaculares da Bíblia (versões aprovadas que a Igreja sancionou por muitos séculos), mas aquelas de natureza particular:

[...] traduções vernáculas, que infringem as normas sagradas da Igreja. Os comentários que estão inclusos freqüentemente contêm explicações perversas; então, rejeitando a divina tradição, a doutrina dos Pais e a autoridade da Igreja Católica, interpretam as palavras de Deus por meio do seu próprio julgamento privado, pervertendo desse modo o seu significado. Como resultado, caem em enormes erros.

Nosso artigo, infelizmente, cita apenas duas seções (13 e 14) de 37. Aqui estão outras porções dele:
10.

11.

15.

21.

24.

25.

Em seguida, o artigo cita a "Nostis et Nobiscum" (1849), outra encíclica do Papa Pio IX. Ela se opõe a "jornais e panfletos impiedosos que estão repletos de mentiras, calúnias e seduções", assim como traduções vernáculas que "infringem as normas da Igreja" e portanto são "subvertidas e mais ousadamente distorcidas para produzir um significado vil".

Ela relembra aos leitores que "nenhum homem, confiando em sua própria sabedoria, está apto a alegar o privilégio de grosseiramente distorcer as Escrituras para o seu próprio significado em oposição ao significado que a Santa Igreja Mãe mantém e manteve". Obviamente que (como todas as advertências e proclamações católicas acima) isso não é diferente daquilo que a própria Santa Escritura afirma sobre a sua própria autoridade, sobre a autoridade da Igreja (e.g., At. 16.4; 1 Tm. 3.15) e da Sagrada Tradição (e.g., Ts. 2.15; 3.6):
Judas 3
"[...] senti a necessidade de mandar-vos uma exortação a fim de lutardes pela fé, que foi transmitida aos santos, uma vez para sempre.

Atos 16.4
"Percorrendo as cidades, Paulo e Timóteo transmitiam as decisões que os apóstolos e anciãos de Jerusalém haviam tomado, e recomendavam que fossem observadas".

Romanos 16.17
"Rogo-vos, irmãos, que tomeis cuidado com os que provocam dissensões e escândalos, contrariando o ensinamento que aprendestes; afastai-vos deles".

Colossenses 2.6-8
"Assim como acolhestes o Cristo Jesus, o Senhor, assim continuai caminhando com ele. Continuai enraizados nele, edificados sobre ele, firmes na fé tal qual vos foi ensinada, transbordando em ação de graças. Que ninguém vos faça prisioneiros de filosofias e conversas sem fundamento, conforme tradições humanas, segundo os elementos do mundo e não segundo Cristo".

2 Tessalonicenses 2.15
"Portanto, irmãos, ficai firmes e guardai cuidadosamente as tradições que vos ensinamos, por nossa palavra ou por nossa carta".

2 Tessalonicenses 3.6
"Ordenamo-vos, irmãos, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que eviteis todo irmão que proceda de modo desordenado e contrário à tradição que de nós recebestes".

1 Timóteo 2.4
"Ele quer que todos sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade".

1 Timoteo 3.15
"Caso, porém, eu demore, já estarás sabendo como deves proceder na casa de Deus, que é a igreja do Deus vivo, coluna e fundamento da verdade".

2 Timóteo 3.5-8
"tendo a aparência da piedade, mas negando sua eficácia. Foge também dessa gente. Deles fazem parte os que entram pelas casas e levam cativas mulherinhas cheias de pecado e movidas por várias paixões, sempre aprendendo, sem nunca chegar ao conhecimento da verdade".

2 Timóteo 4.7
"Combati o bom combate, terminei a corrida, guardei a fé".

Tito 1.1
"Paulo, servo de Deus e apóstolo de Jesus Cristo para levar os eleitos de Deus à fé e ao conhecimento da verdade conforme a piedade".

Tito 1.10-15
"De fato, existem muitos rebeldes, faladores fúteis e impostores, principalmente entre os da circuncisão. É preciso fechar-lhes a boca. Movidos por lucro vil, transtornam famílias inteiras, ensinando o que não convém. Um deles, seu próprio profeta, disse: 'Os cretenses são sempre mentirosos, animais ferozes, ventre preguiçosos'. Esse testemunho é verdadeiro. Então, repreende-os severamente, para que sejam sãos na fé e não dêem ouvidos às fábulas judaicas, nem a preceitos de pessoas que voltam as costas à verdade. Para os puros tudo é puro, mas para os impuros e incrédulos nada é puro; até o seu pensamento e sua consciência estão manchados".

2 João 1.9-11
"Todo aquele que se adianta e não permanece no ensinamento de Cristo, não tem a Deus. Aquele que permanece em seu ensinamento, esse tem o Pai e o Filho. Se alguém chega até vós e não traz esse ensinamento, não o recebais em casa, nem o cumprimenteis. Com efeito, quem o cumprimenta participa das suas obras más".
Em seguida, no bloco de cortes, está a "Officiorum ac Munerum" (1897), do Papa Leão XIII. Bíblias não católicas podem ser lidas e usadas "apenas por aqueles engajados em estudos teológicos e bíblicos, desde que os dogmas da fé católica não sejam impugnados nos prolegômenos ou nos comentários". O Papa Leão continua: "Todas as versões da Bíblia Sagrada, em qualquer língua vernacular, produzida por não católicos, estão proibidas [...] No entanto, essas versões são permitidas a estudantes de teologia ou de ciência bíblica, sob as condições mencionadas acima (No. 5)".

É o mesmo princípio de sempre. Sem dúvida, a Bíblia holandesa "oficial" (discutida acima) entre os calvinistas e a Bíblia de Lutero entre os luteranos alcançaram "status" semelhante, e outras "rivais" foram proibidas ou permitidas (se for o caso) apenas em circunstâncias limitadas. Mostrei em um texto anterior como a tradução católica do Novo Testamento feita pelo oponente de Martinho Lutero em debates foi imediatamente condenada por (proponente da total liberdade individual?) Lutero, que instou os territórios luteranos a censurarem-na e a proibirem-na. O mesmo princípio. As únicas diferenças são as Bíblias particulares aprovadas e condenadas. 

Outros textos produzidos pelo artigo expressam sentimentos similares àqueles já vistos repetidamente neste exame e em minhas três respostas anteriores. Já demonstrei, até o momento, que a análise é implacavelmente errônea e equivocada. Ele apenas continua repetindo os mesmos erros com base nas mesmas velhas premissas falsas: contrárias tanto à Bíblia quanto às práticas praticamente idênticas dos protestantes. 

É verdade, por outro lado, que, com o tempo, a Igreja Católica tornou-se muito mais aberta ao estudo da Bíblia, à sua leitura e até mesmo a traduções não católicas (com algumas advertências e estipulações). A ênfase tornou-se mais positiva do que "negativa" no sentido de que erros foram vigorosamente condenados a fim de proteger o rebanho católico. Era tempo de uma abordagem diferente.

Desse modo, nessa linha, temos as famosas encíclicas "Providentissimus Deus" (Papa Leão XIII: 1893) e "Divino afflante Spiritu" (Papa Pio XII: 1943) e muitos outros documentos similares da Igreja desde então, incluindo as maravilhosas reflexões do Vaticano II, os Papas Santos (João XXIII, Paulo VI, João Paulo II) e a excelente exegese bíblica do Papa Bento XVI.

Não que eu tenha alguma importância, mas o meu apostolado é um exemplo de um (entre muitos) que dá enorme ênfase à completa harmonia entre a doutrina católica e a Bíblia Sagrada. Meu primeiro livro foi "Uma defesa bíblica do Catolicismo" e meu blogue é chamado "Evidência Bíblica para o Catolicismo". Eu alego, em mais de 3.300 artigos no blogue e em 50 livros, que a doutrina católica é consistente e unicamente fundamentada e baseada na Bíblia e que é mais profundamente bíblica do que qualquer forma de doutrina protestante; além disso, que a regra de fé protestante, o "Sola Scriptura", é tanto não bíblico como totalmente falso e autodestrutivo.

Novamente (isso nunca é suficientemente enfatizado), tal visão não é contrária à Bíblia de modo algum. Ela se opõe ao entendimento incompleto de que somente a Escritura é uma autoridade infalível. A Igreja Católica ensina que a Igreja e a Sagrada Tradição também são infalíveis e estão sempre em harmonia com a Sagrada Escritura. Esse é o nosso tripé, recebido da própria Bíblia e que nos foi transmitido pelos Apóstolos e Pais da Igreja. 

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Crédito da foto: pedro_wroclaw (1-29-2021) [Pixabay / Pixabay License]

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Sumário: A "Unigenitus" (1713), do Papa Clemente XI, proíbe a leitura da Bíblia? Não. Também mostro como outros decretos católicos não são antibíblicos e que os calvinistas similarmente criticaram obras "errôneas".

[Tradução: Fábio Salgado de Carvalho; texto original: 

[1] Nota do tradutor (NT): o Dave Armstrong faz uso da RSV. Utilizamos a Tradução oficial da CNBB, 1ª edição de 2018.

[2] NT: tradução retirada do site Monergismo.



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