sábado, 9 de maio de 2009

Zii e Zie e Maldita Reforma


Contrariando o que tinha dito na postagem anterior, tenho de admitir que gostei muito do novo álbum do Caetano — "Zii e Zie" (Tios e tias na Língua Italiana). Tal alcunha para o álbum foi escolhida, de acordo com Caetano, quando ele se deparou com a tradução italiana do livro "Istambul — Memórias de uma cidade" do escritor turco Orhan Pamuk, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2006. Ele achou as palavras bonitas, visualmente e sonoramente, e resolveu utilizá-las como título do álbum. Não sei dizer ao certo se gostei mais deste álbum ou do Cê, o anterior; na verdade, cada vez que ouço um álbum do Caetano, Livro, Noites do Norte etc. , parece que gosto mais dele do que dos outros. O álbum possui por subtítulos "transambas" na capa e "transrock" na contra-capa — é um saco ter de ficar consultando a toda hora o uso do hífen depois dessa maldita reforma; voltarei, depois, ao assunto. O prefixo "trans" significa "além de" ou "através de". Muita gente usa a locução "através de" como sinônima à "por meio de" ou "por intermédio de", mas elas não são intercambiáveis. Aquela possui sentido de "por dentro de", "de um lado a outro", sendo que ela é comumente usada para referir-se a algo que transpassa um meio físico. Os subtítulos descrevem bem o álbum de Caetano na medida em que uma banda composta pelo Pedro Sá — guitarra —, Marcelo Callado — bateria — e Ricardo Dias Gomes — baixo e Rhodes — possui um formato básico de rock, mas as músicas são sambas com roupagem de rock. Existe uma comunicação intensa entre os dois estilos musicais. Farei um breve comentário às músicas do álbum.

Perdeu

A música tem uma levada de guitarra muito legal. Boa escolha para abertura do álbum. Não tinha gostado muito dos solos do Pedro Sá no álbum, mas agora os entendo melhor e mudei de idéia. Gostei dos barulhos da guitarra no solo dessa música, mas acho que eu teria feito algo muito mais melódico: dava pra criar muita coisa em cima da levada principal da música. Adoro músicas em que você aumenta o seu vocabulário. Não sabia que "vagir" é "gemer" e "Bruxulear" é "tremeluzir", "estremecer". Não sei se é só impressão minha, mas na parte em que o Caetano canta "não diz isso não, diz isso não", no primeiro "diz", ele pronuncia como "zii" em Italiano, que seria mais ou menos como [dizi]. Muito interessante a combinação de alternâncias de notas com as palavras rimadas: "pariu, cuspiu, expeliu" etc. . Na metade da música, o Caetano canta fazendo u's e a's de um jeito estranho. Não ficou legal. Tem uma hora que parece um burro zurrando. Muito legal a ambigüidade que surge em

"surgiu, vagiu, escapuliu
no som, no sonho, somem
são cem, são mil, são cem mil, milhão"

"somem" pode ser tanto o presente do indicativo do verbo "sumir" quanto o imperativo do verbo "somar". As letras de músicas têm um fator curioso que se refere a uma maior ambigüidade, até porque mesmo os textos, quando escritos, não têm precisão quanto à pontuação. O trecho acima, por exemplo, dependendo da maneira como se articula as vírgulas, pode ter vários significados. Da maneira como está acima, a pessoa pode ter escapulido no som e surgido e vagido no sonho, mas se houvesse uma vírgula após "escapuliu", todas as ações seriam ligadas a "no som" e "no sonho".


Sem Cais

Parceria do Caetano com o Pedro Sá. Outra música que tem uma levada muito legal. Tenho de destacar que o álbum todo é recheado de levadas interessantes. As notas fantasmas da caixa com o chimbalhi hat — aberto nas batidas principais caíram muito bem. A bateria dá a base, e o baixo, com um fraseado próprio, preenche os espaços vazios deixados pela guitarra.

Por quem?

Música em que o Caetano explora o seu falsete, muito bem executado por sinal. Dessa vez, as batidas com vassourinha na caixa são protagonistas, preenchendo os espaços deixados pelos outros instrumentos. O Violão ocupa um papel primordial depois de um tempo. Os instrumentos vão ocupando espaços e importâncias diferentes no decorrer da música. A guitarra é minimalista. Bela letra do Caetano. A mesma ambigüidade que destaquei na primeira música surge aqui. Quando o Caetano diz "Lágrimas vão de mim por quem?" ele pode estar referindo-se a qual pessoa o faz chorar, ou às sensações e paisagens, personificadas, listadas por ele. Percebam que se ele quisesse referir-se somente a algo que não fosse uma pessoa, seria mais adequado usar o pronome relativo "que", mas geraria outra ambigüidade, pois o questionamento do causador do choro seria trocado pelo questionamento da finalidade, embora o uso de "por quê" também inclua o sentido de quem causou o choro.

Lobão tem razão

Faz um tempo que o Caetano e Lobão têm tido uma rixa*. Caetano citou o Lobão na música "Rock n' Raul" do álbum Noites do Norte, o Lobão não gostou e deu a resposta numa música chamada "Para o mano Caetano" e o Caetano revida com essa música extremamente sarcástica. O Caetano faz jogo de palavras com o nome do Lobão usando Hobbes "o homem é o próprio Lobão do homem" e ditos populares "mais vale um Lobão do que um leão", fazendo alusão, também, à música "Leãozinho". O Lobão critica a Bossa e o Samba e, ironicamente, Caetano fala que o "Rock acertou". Não tinha gostado muito do solo gritado e exagerado do Pedro Sá, mas agora acho que foi intencional pra retratar o incômodo de Caetano, tanto que no fim da música ele, Caetano, faz um barulho parecido ao zumbir de uma abelha ou um mosquito no pé do ouvido.

*http://irradiandoluz.blogspot.com/2009/01/mano-caetano-x-mano-lobao.html

A cor amarela

Não poderiam faltar os coloquialismos do Caetano. Ele tem muita habilidade em cruzar palavras do dia-a-dia com vocabulários mais apurados: na mesma música em que ele usa a palavra "bunda", ele também utiliza "pele tesa". A palavra "tesa" remeteu-me à música "Zera a reza", também do álbum Noites do Norte — adoro jogo de palavras! Perceberam que as palavras "zera" e "reza" são quase iguais? Basta trocar as consoantes! Legal também o uso da palavra "onda" como substantivo e expressão idiomática "que onda". Engraçado o comentário de que a melhor coisa que podia acontecer à cor amarela é a bunda. As palmas que surgem na música com certeza terão repercussão nos shows. Letra simples, mas muito bem construída!

Base de Guantánamo

Música que fica na cabeça e você não pára de querer cantar. Li uma entrevista que perguntava ao Caetano se a música não estaria ultrapassada pela política de Obama com relação aos desmantelamento da Base de Guantánamo, mas não acho que isso seria um motivo para a música deixar de ter voz de protesto. Mesmo que a base deixe de existir, foi um fato histórico e as atrocidades cometidas não deixarão de existir. Lembrei-me das exigências de Che Guevara que aparecem na primeira parte do filme que vi recentemente. A principal parte da música ocorre num crescente seguido de decrescente

Guantánamo
A Base de Guantánamo
A Base da Bahia de Guantánamo
A Base de Guantánamo
Guantánamo

Acredito que além de facilitar na hora de cantar pra evitar confusões, existe uma motivação no sentido de mostrar o surgimento da Base, seu ápice e seu desmembramento e que futuramente, todos os desrespeitos aos direitos humanos não serão mais importantes do que o próprio lugar geográfico. A voz ritmada e falada cruza com o falsete e vozes melódicas. As palhetadas da guitarra parecem facadas, tiros, mas existe uma variação rítmica muito interessantes na levada. A música termina com um toque repentista.

Falso Leblon

A guitarra no início lembrou-me a guitarra de London London no álbum ao vivo Cê. Música recheada de citações: Los Hermanos, Seu Jorge... Há uma crítica veemente às drogas. A música é literalmente "sexo, drogas e rock n' roll".

Incompatibilidade de Gênios

Concordo com o Caetano quando ele diz que essa música do João Bosco/Aldir Blanc é genial. Não acho que a versão do Caetano superou a original, como ele mesmo disse e admitiu, mas achei interessante a releitura. Ele colocou no blog duas versões para esta música e pediu que as pessoas votassem em qual preferiam. Acho que eu preferi a outra versão se não me lembro. A letra é muito legal. Descreve todas as encheções de saco de uma mulher a um provável advogado, por causa do "dotô"; no fim, diz-se que se quer a separação. A batida da bateria com o tempo forte na caixa fora do tempo forte da música deu contraste e um desencontro legal. O solo da guitarra é interessante. Parece com duas pessoas discutindo, alternando-se a altura, duração das notas e desafinando-as.

Tarado ni você

As revistas e resenhas que li dizem que é a bobagem do álbum, mas achei interessante a jogada de linhas harmônicas com a melodia. Músicas com letra menor e menos variação melódica dá margem pra arranjos mais elaborados. O solo do Pedro Sá é um dos melhores do cd. É mais clássico que os outros. Música bem alternativa; no fim, o barulho do mato lembra uma paisagem bucólica.

Menina da Ria

Remete-nos, imediatamente, à Menino do Rio, lançada no álbum Cinema Transcendental (1979). Acho-a muito legal, empolgante. O refrão dá vontade de cantar junto. Interessante a variação da nota quando o Caetano canta "Ria". Ele sobe com falsete no fim da música. O Caetano disse, em entrevista, que havia prometido a música num concerto seu em Aveiro — Portugal — em 2008. Ele disse que todo mundo falava "a ria" por lá e que ele disse, brincando, que um dia ira compor Menina da Ria.

Ingenuidade
Composição do Serafim Adriano. Eu, como baterista, nunca pensaria nessa levada pra tocar um samba. O Marcelo Callado mandou bem. O baixo entra depois com uma levada muito legal com uma melodia própria que casa muito bem com a guitarra. Dá pra ver que a letra não é do Caetano, já que as dele são sempre mais cerebrais. Interessante o uso do verbo "reclamar" como intransitivo, já que ele não é muito usado. A música intitula-se "Ingenuidade" e esse ar de ingenuidade impera na maneira como a temática é abordada. Não conheço as gravações anteriores a esta. Estou baixando uma versão cantada pelo Roberto Ribeiro. Para ser sincero, nem conhecia o Serafim Adriano, mas gostei muito da música.

Lapa

Música emblemática do cd. Gostei muito das linhas melódicas com os acordes menores. É triste eu não conhecer essas particularidades do Rio que aparecem no álbum. O Caetano adora um estrangeirismo — vide "cool". Ele sempre solta uma palavra do tipo nas suas letras. O modo como a música termina é muito interessante porque você acha que ele repetirá a palavra "Lapa", mas ele diz "lá". Outra música recheada de citações: Kassin, Lula, FHC... A levada de marcha da bateria marca a música.

Diferentemente
Aqui, continuam as citações, Madona, Obama... Uma bossa básica pra fechar o álbum. Possui uma temática filosófica profunda, abrangendo a Ontologia, Metafísica. Interessante como ele inicia o assunto a partir de uma canção da Madona — "When you look at me", e mistura romantismo com Filosofia, finalizando com Política. Só o Caetano pra manipular as palavras e temáticas de maneira tão magistral.
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Tinha muitos assuntos pra escrever, mas os deixarei para uma outra oportunidade, com exceção a um acontecimento desta semana, que se refere à "maldita reforma" a qual me referi na abertura desta postagem — quero evitar a palavra "post". A Dani, minha namorada, queria vender alguns livros didáticos num Sebo; no entanto, fomos em dois e ambos recusaram-se a comprar os livros tendo-se por base o fato de que os colégios da rede particular já adotaram livros com a grafia da nova reforma e que a rede pública já pretende trocar os livros. Cada vez mais eu me indigno com essa reforma. O pior é que ela foi assinada por um presidente analfabeto. Até agora não conheço um escritor de renome que tenha dado a sua aprovação à reforma do modo que ela foi feita. Com exceção do uso dos hífens, que eu já tinha bastante dor de cabeça de usá-los antes da reforma, decidi que não irei modificar minha grafia, a não ser que escreva textos de provas e afins. O engraçado é que em vez de tomarem medidas que popularizem a norma culta e difunda o seu uso, inventam moda. A Língua Francesa nunca teve uma reforma deste tipo, ela teve poucas mudanças no decorrer do tempo, enquanto a Língua Portuguesa, que é muito menos importante mundialmente em todos os âmbitos, teve um festival de mudanças no século XX. Os franceses possuem um apreço pela língua que nós não temos; talvez, seja porque eles não entram na Universidade sem passar por um exame de conhecimento da Língua, enquanto temos vários doutores analfabetos aqui.




Um comentário:

  1. Oi Fábio!

    Que bom que você me citou nessa passagem sobre a rixa entre Caetano e Lobão. Fiz uma extensa pesquisa sobre essa história, mas deixei passar uma série de referências. Afinal, cada estrofe é uma metáfora, uma provocação velada, uma ironia disfarçada... uma rixa babaca que gerou letras criativas e músicas provocativas...
    Sucesso!
    Fiquei com vontade de ouvir esse disco novo do Caretano...

    Abração
    Gabriel Dread

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