sábado, 1 de setembro de 2018

Por que o "Sola Scriptura" não pode funcionar

Joseph Noel Paton (1821-1901), "Lutero em Erfurt"

I

Aquilo que os modernos chamam de "razão pura" não é a mesma coisa que os medievais chamavam de "razão natural". Nesta, a metafísica precede a epistemologia e a lógica; naquela, ocorre o inverso — lembrem-se de que Descartes, nas suas "Meditações Sobre Filosofia Primeira" faz precisamente isso! 

Se levarmos em conta apenas esse fator da filosofia cartesiana, já seria completamente absurdo acreditar que a Escolástica tenha qualquer culpa por aquilo que vimos na Modernidade, mas isso é assunto para outra postagem.

Essa virada inicia-se com o nominalismo, na baixa Idade Média. Quando o conhecimento deixa de ser uma apreensão da realidade, mas uma mera convenção lingüística, naturalmente, a subjetividade passa a ter predominância sobre a objetividade. 

Na minha dissertação de mestrado, intitulada "A antessala da argumentação: por uma abordagem negativa" (http://documents.scribd.com.s3.amazonaws.com/docs/4jieq018hs5535ak.pdf), eu mostro, tecnicamente, como toda argumentação pode sempre receber uma contra-argumentação e como, apenas do ponto de vista da "razão pura", não existem critérios objetivos de decisão para a escolha de um argumento válido, correto, sólido ou o que mais vocês quiserem.

Um argumento tem uma estrutura tripla: um conjunto de premissas, um conjunto de conseqüências e uma relação de conseqüência lógica que conecta os dois conjuntos. 

Uma interpretação de texto é, no fim das contas, um tipo particular de argumento, de uma inferência lógica, e está, portanto, submetida a tudo o que expus até aqui sobre as argumentações. 

Pensem, por exemplo, na passagem de Marcos 16.16, que afirma que "aquele que crer e for batizado será salvo". Na lógica clássica tradicional, a conjunção é comutativa. A alteração da ordem dos conjunctos, dos elementos que fazem parte da conjunção, não altera o valor de verdade da conjunção. 

Dou-lhes um exemplo. Se eu digo que você ganhará 500 mil reais e um apartamento em um sorteio, você não reclamará se, primeiramente, receber o dinheiro antes do apartamento ou se eu lhe der a chave do imóvel antes do depósito do montante na sua conta. 

Na linguagem natural, entretanto, a situação é mais complexa porque as conjunções podem envolver relações temporais. Se, por exemplo, eu lhe disser, em uma receita de bolo, para quebrar os ovos e mexê-los, obviamente, você sabe que não há a opção de os mexer antes de os quebrar. 

No caso da passagem de Marcos 16.16, um batista, contrário ao batismo infantil, poderia argumentar que a passagem está afirmando que a crença precede o batismo. Um presbiteriano poderia contra-argumentar com o fato de que conjunções não são necessariamente temporais. 

Quem está certo? 

Se, como eu mostrei na minha dissertação de mestrado, qualquer argumento pode sempre ser contestado, a partir das suas próprias propriedades estruturais, qualquer contra-argumento, igualmente, sempre poderá ser contra-argumentado e, assim, temos um procedimento argumentativo interminável. 

Para cada passagem que você trouxer à tona, além de Marcos 16.16, a fim de embasar a sua interpretação, haverá a possibilidade de uma nova argumentação.

Qualquer pessoa com bom preparo lógico e lingüístico, se tiver muita má vontade, pode nunca aceitar qualquer argumento!

II

Pensemos, agora, no dogma da Maternidade Divina, declarado pelo Concílio de Éfeso, no ano 431, que afirma que Nossa Senhora é "Mãe de Deus". 

Uma maneira bastante simples de argumentar em favor do dogma é da seguinte maneira:

(1) Maria é mãe de Jesus;
(2) Jesus é Deus;
(3) Logo, Maria é mãe de Deus.

Para que a conclusão (3) não pudesse ser conclusa a partir de (1) e de (2), há três possibilidades: 

(i) você ataca a veracidade de (1), afirmando, portanto, que Maria não é mãe de Jesus;

(ii) você ataca a veracidade de (2), afirmando, por conseguinte, que Jesus não é Deus.

Praticamente nenhum protestante estaria disposto a negar essas duas premissas, mas alguém atualizado com o conhecimento lógico dos últimos anos poderia apelar a uma terceira possibilidade:

(iii) você ataca a relação de conseqüência lógica que permite inferir (3) de (1) e de (2) mesmo se supondo que (1) e (2) sejam verdadeiras. 

Na Lógica clássica tradicional, há uma famosa lei, conhecida por "Lei de Leibniz", que rege a intersubstituição de idênticos "salva veritate". Em outras palavras, se um objeto "a" é idêntico a "b", se "b" tem todas as propriedades de "a", e vice-versa", em uma dedução lógica, você pode substituí-los sem alteração no valor de verdade das operações lógicas. 

Quando pensamos em Jesus Cristo, entretanto, pelo menos enquanto estava na Terra, sabemos de pelo menos uma propriedade que Deus Pai tinha e que ele não tinha: a onisciência! 

Em Mateus 24.36, lemos Jesus dizendo: "Quanto àquele dia e àquela hora, ninguém o sabe, nem mesmo os anjos do céu, mas somente o Pai.".

É fácil compreender isso quando levamos em conta aquilo que São Paulo diz em Filipenses 2.7, afirmando que Deus "esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo", mas o ponto é que alguém poderia alegar que a argumentação inicial não pode ser aplicada a Deus porque a igualdade entre Cristo e Deus não respeita as leis da lógica clássica, pressupostas na argumentação. 

Eu poderia, em contrapartida, oferecer uma contra-argumentação a tudo o que eu disse até aqui.

Vocês percebem? Com alguma sofisticação, você pode defender o que você quiser! Esse é o problema do "Sola Scriptura"!

III

Quando eu era arminiano, nos meus anos de protestantismo imediatamente anteriores à minha conversão ao Catolicismo, depois de muitos embates com calvinistas, eu percebi que era impossível chegar a qualquer conclusão discutindo com reformados biblicamente. 

O procedimento das postagens anteriores pode ser visto em qualquer embate entre denominações protestantes ou linhas teológicas diferentes. 

Calvinistas convictos dos seus princípios sempre irão usar recursos argumentativos para inferi-los das Escrituras, oferecendo contra-argumentos quando os outros se contrapuserem a eles. 

Isso vai acontecer com qualquer protestante que quiser permanecer na sua denominação até morrer!

Leiam aquelas coleções de debates teológicos, como a "Counterpoints" ou como a "Spectrum Multiview Books". Do ponto de vista meramente bíblico, não há qualquer critério de decisão para você chegar à conclusão de quem está certo!

Tomás de Aquino dizia que uma das funções do sábio é, precisamente, julgar os princípios e o mesmo Aquinate dizia que "contra fatos não há argumentos". 

É justamente aí que se encontra o segredo para fugir da condição de Barão de Münchhausen: em vez de tentar sair do pântano puxando-se os próprios cabelos, a saída está em tentar um apoio fora do atoleiro.

O tripé católico Escrituras-Magistério-Tradição é a única saída para o problema! 

Se você quiser que eu explique as minhas crenças católicas a partir da perspectiva bíblica, eu posso fazer isso tranqüilamente. Eu passei 27 anos no Protestantismo. Eu não rasgaria a minha Bíblia para abraçar o Catolicismo de jeito nenhum — eu não sou maluco! —, mas o ponto da questão é que o máximo que eu poderei fazer, partindo apenas das Escrituras, é mostrar-lhe que nada do que creio contradiz a Bíblia. No entanto, mostrar que duas proposições são contraditórias passa pela mediação da argumentação e, novamente, estaremos submetidos a todos os problemas que mostrei até aqui.

Antes de discutir se uma crença é ou não bíblica, a grande questão deveria ser se Jesus Cristo ensinou ou não essa crença. Pularemos, então, da mera argumentação para os fatos e destes para o julgamento de princípios, que não se reduz à aplicação da "razão pura" moderna que faz da epistemologia a filosofia primeira, mas que se vale da apreensão do real, da metafísica.

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